HISTÓRIAS

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O racismo pelo olhar de uma jovem: “Tornei-me negra quando cheguei a Portugal”

Valdeth Dala nasceu e cresceu em Angola, onde viveu até 2023, quando se mudou com a família para Portugal. A experiência confrontou-a com a brutalidade do racismo, realidade sobre a qual a jovem de 19 anos reflecte neste texto, inspirada no caso de Maria Luemba.

Valdeth Dala nasceu e cresceu em Angola, onde viveu até 2023, quando se mudou com a família para Portugal. A experiência confrontou-a com a brutalidade do racismo, realidade sobre a qual a jovem de 19 anos reflecte neste texto, inspirada no caso de Maria Luemba.

Texto de Valdeth Dala

Quando eu me mudei com a minha família para Portugal em 2023, eu percebi que o racismo não só existe, como é uma questão muito séria. Percebi que a realidade é ainda mais brutal do que qualquer filme representa. Percebi que ainda vivemos num mundo em que o negro é discriminado, agredido, menosprezado, e julgado simplesmente por ser negro.

Nasci e cresci em Angola, um país com uma população maioritariamente negra, onde o racismo é arquivado em livros de História, e tido apenas como parte de um passado inconveniente.

Ao longo da minha adolescência, comecei a acompanhar filmes que abordavam, retratavam, denunciavam e contestavam o racismo no período da escravidão, no período colonial e pós-colonial, como por exemplo: “12 Anos Escravo”, “As Serviçais”, “Mandela: Longo Caminho Para Liberdade”, “O Ódio que Semeias”, “Foge”.

Mas, nenhum filme me preparou para a realidade que encontrei cá em Portugal, onde, no dia 12 de Junho, Maria Luemba, uma menina angolana de 17 anos, foi encontrada morta em sua residência, numa vila perto de Aveiro.

As autoridades apontaram para um suicídio, porém os familiares contestam essa versão. Há, inclusivamente, suspeitas de homicídio, implicando um vizinho com desavenças anteriores com a família.

Esse caso gerou grande comoção junto da comunidade negra – mas não em toda a sociedade –, e culminou num protesto realizado no último domingo, 29 de junho.

Mas o que o caso Maria Luemba tem que ver com racismo? Responderei a essa questão nos parágrafos seguintes.

A forma como a investigação à morte de Maria Luemba começou por ser conduzida levanta dúvidas sobre a atuação policial, com fortes indícios de racismo institucional.

Aliás, desde o início houve falta de informações por parte da polícia, remetida ao silêncio.

Por outro lado, a imprensa só passou a cobrir o caso após a mobilização por parte de coletivos negros e protestos organizados nas redes sociais.

Infelizmente, o caso Maria Luemba não é único. São várias as pessoas negras agredidas, oprimidas e assassinadas em Portugal.

Odair Moniz, cabo-verdiano de 43 anos, foi morto a tiro por um agente da PSP durante uma perseguição na Cova da Moura, em outubro de 2024. Cláudia Simões, mulher angolana, foi agredida violentamente por elementos da PSP na Amadora, em janeiro de 2020. Elson Sanches, conhecido como “Kuku”, era um jovem português negro de 14 anos e foi morto a tiro por um agente da PSP durante uma perseguição no antigo bairro de Santa Filomena, em 2009. Luís Giovani Rodrigues, jovem cabo-verdiano de 21 anos, morreu na sequência de uma agressão racista em Bragança, ocorrida em dezembro de 2019.

É enorme a lista de pessoas cujas mortes, opressões, agressões e abusos sofridos não recebem a devida atenção por serem negras, imigrantes ou de contextos socioeconómicos desfavorecidos.

Nos últimos dias, ouvi de um amigo que o sistema já era do jeito que é mesmo antes de eu nascer, e que tentar mudá-lo ou ir contra ele é como tentar remar contra uma maré, que sempre acaba por vencer. A seguir, acrescentou: “É assim, só nos resta aceitar”.

Ele não é a primeira pessoa que eu ouço a dizer isso, e sei que não é a única pessoa a pensar assim. Na verdade, são várias as pessoas que pensam e dizem: “O racismo sempre existiu e sempre existirá”, ou então “O racismo sempre existirá na sociedade, o que nos resta é nos conformarmos com isso”.

Mas como posso me conformar com um sistema que vê a minha cor como arma?

Assim como Grada Kilomba escreveu “me tornei negra quando cheguei aos EUA”, eu também posso afirmar que me tornei negra quando cheguei a Portugal. Foi necessário sair do meu país, da minha bolha, para entender que o racismo não é passado — é presente, mas não pode ser futuro.

Não posso me conformar com um sistema que continuamente agride, oprime e mata pessoas como eu. Poderia ser eu ou a minha irmã no lugar da Maria Luemba. Poderia ser a minha mãe no lugar da Claúdia Simões. Poderia ser o meu irmão no lugar de Elson Sanches. Poderia ser o meu pai no lugar de Odair Moniz. Então, eu digo não. Não posso simplesmente aceitar a falência do sistema. Não posso simplesmente me conformar com uma sociedade racista.

O que está em causa não são apenas casos de mortes violentas, agressão, opressão de pessoas negras, mas sim a forma como o sistema reage – ou se cala – quando a vítima não se enquadra no perfil de “vítima ideal” construído pela sociedade.

Que a justiça por todas as pessoas aqui mencionadas — e também por aquelas que não foram mencionadas — seja feita. Que o sistema mude e melhore, para que as próximas gerações não tenham que lutar mais essa luta.

Faço do sonho de Martin Luther King Jr. meu sonho.

“Tenho um sonho: que os meus quatro filhos um dia viverão numa nação onde não serão julgados pela cor de pele, mas pelo seu caráter.” Martin Luther King Jr.

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Dança, canta, partilha vivência ancestral, segue para o Sacerdócio no Candomblé e dá-se a ouvir na Gulbenkian – ela é Nara Couto

Nascida no bairro baiano do Curuzu, que apresenta como o “mais negro fora de África”, Nara Couto fez carreira como bailarina antes de soltar a voz nos palcos. No próximo sábado, 5 de Julho, é dia de a ouvirmos e aplaudirmos no Jardim de Verão da Gulbenkian, onde actua às 17h. A entrada é livre, mediante levantamento de bilhetes.

Nascida no bairro baiano do Curuzu, que apresenta como o “mais negro fora de África”, Nara Couto viveu na Bahia de origem até aos 11 anos, idade em que se mudou para a Suíça, destino de fixação materna. No regresso a casa, o Balé Floclórico da Bahia fincou-lhe as raízes no palco. “Comecei a dançar aos 17 anos. Então, fiquei no Brasil para construir minha carreira”, conta ao Afrolink. Filha do coreógrafo e director artístico Zebrinha, Nara aprendeu a arte da dança com o pai, e já depois de actuações em salas de todo o mundo como bailarina, aventurou-se na música. Primeiro enquanto backing vocal de figuras como Gilberto Gil, Margareth Menezes, Ivete Sangalo e Daniela Mercury, e desde 2017 em nome próprio, numa assinatura construída sob o impulso criativo de Sara Tavares, a artista está a promover o segundo álbum, intitulado “Orí”. Antes, gravou o single “Linda e Preta” – transformado numa “música de impulsionamento da auto-estima de mulheres negras” –, e lançou o projecto “Outras Áfricas”, onde se afirma como “diplomata cultural”. Agora a caminho do Sacerdócio no Candomblé, a artista, criadora da oficina de movimento “Vivência Ancestral”, vê nesta religião uma forma de preservação da presença de África no Brasil. “O Candomblé é um lugar de resistência muito grande”. No próximo sábado, 5 de Julho, é dia de a ouvirmos e aplaudirmos no Jardim de Verão da Gulbenkian, onde actua às 17h. A entrada é livre, mediante levantamento de bilhetes. Vamos!

Num barco no meio do mar, entre espectáculos por Portugal, Nara Couto encontrou em Sara Tavares o balanço que, até hoje, marca a sua identidade musical.

“Eu disse: é isso! Estou conectada. Foi a primeira vez que ouvi Balancê, e mexeu muito comigo”.

Mergulhada na voz e composição de Sara, Nara fez dela assinatura, e letra a letra, dá-nos a escutá-la no próximo sábado, 5 de Julho, às 17h, no Jardim de Verão da Gulbenkian.

A caminho do concerto, o Afrolink foi conhecer mais sobre a artista, que firmou carreira como bailarina, antes de soltar a voz como cantora.

“As pessoas achavam que eu tinha que cantar um pouco mais forte, mas eu tinha a Sara Tavares como referência. E a Sara cantava sobre amor e sobre a leveza”.

Ainda a refazer-se da dor da perda da cantautora – que teve a oportunidade de ver actuar num concerto em Cabo Verde –, Nara conta como encontrar a voz de Sara, falecida em 2023, a inspirou a querer conhecer mais.

“África chegou até mim porque eu pesquisava muito. E quando comecei nessa busca, a minha referência foi a Sara Tavares, inclusive para a capa de um disco”.

Entretanto embalada também por outras músicas de criação africana, a baiana partilha múltiplas inspirações.

“Em Cabo Verde, eu comecei a ouvir os Tubarões e o Gil Semedo”, assinala, antes de revelar uma companhia de todos os dias.

“Sou muito fã do Paulo Flores – o tio Paulo –, que eu oiço sempre, e com quem tenho contacto”.

A ligação, antecipa Nara ao Afrolink, encaminha-se para uma parceria em fase de construção: “Estamos a conversar sobre projectos futuros”.

Da Bahia para “Outras Áfricas”

Nascida no bairro baiano do Curuzu, que apresenta como o “mais negro fora de África”, a artista viveu na Bahia de origem até aos 11 anos, idade em que se mudou para a Suíça, destino de fixação materna.

No regresso a casa, o Balé Floclórico da Bahia fincou-lhe as raízes no palco.  “Comecei a dançar aos 17 anos. Então, fiquei no Brasil para construir minha carreira”.

Filha do coreógrafo e director artístico Zebrinha, Nara aprendeu a arte da dança com o pai, e foi já depois de actuações em salas de todo o mundo como bailarina, que se aventurou na música.

Primeiro enquanto backing vocal de figuras como Gilberto Gil, Margareth Menezes, Ivete Sangalo e Daniela Mercury, e desde 2017 em nome próprio, a artista está a promover o segundo álbum, intitulado “Orí”.

Antes desta produção, que se vai estender a uma curta-metragem, a baiana gravou o single “Linda e Preta” – transformado numa “música de impulsionamento da auto-estima de mulheres negras” –, e lançou o projecto “Outras Áfricas”, onde se afirma como “diplomata cultural”.

“A intenção é fazer com que a gente realmente faça grandes pontes”, sublinha, depois de uma viagem pela Guiné-Bissau, onde as ligações musicais incluíram um encontro com a Secretária de Estado da Cultura, Nancy Alves Cardoso.

“Imediatamente também escrevi para o Secretário de Cultura do Estado da Bahia para falar: ‘Estou aqui em Guiné-Bissau, estamos conversando e precisamos conversar mais”.

Nara promove e aprofunda esse diálogo a partir do projecto “Outras Áfricas”, que completou uma década em 2024.

A iniciativa, que num primeiro momento foi desenvolvida no Brasil, através do encontro com músicos africanos aí radicados, volta-se agora para os PALOP.

Depois do voo guineense, que teve como anfitrião e parceiro Mû Mbana, a baiana planeia viagens a Cabo Verde e Angola, sempre com ligações de palco e de estúdio.

“Estamos organizando para que todo mês eu possa estar compartilhando uma música com um artista do continente africano”, antecipa Nara, apontando Mû Mbana como o primeiro nessa frente de gravações. 

Danças com ancestrais e Sacerdócio no Candomblé

A rota de expressão e projecção musical combina-se sempre com movimento, hoje traduzido, para além dos palcos, no projecto “Vivência Ancestral”.

A proposta, assinala-se na sinopse, recorre a “momentos práticos multireferenciais das culturas negras e da transmissão oral de conhecimento”, para “criar uma experiência significativa que contribua para o bem-estar pessoal e colectivo, bem como para a preservação das tradições ancestrais a partir da dança”.

Já apresentada em Lisboa e no Porto, a vivência, explica Nara, é sobre ela própria “ser um instrumento que transporta uma mensagem que já foi passada pelos mais velhos”. O processo, sublinha, está enraizado na sua vida.

“É dessa forma que eu também adquiro a minha sabedoria, eu sento e converso com os mais velhos, eu leio livros. Eu ouço o vento, eu ouço o silêncio para depois compartilhar”.

Desengane-se, por isso, quem vai em busca de um workshop de dança. Na “Vivência Ancestral”, Nara entrega conexão – de cada pessoa consigo própria, com as suas raízes, com a natureza, com o mundo e a humanidade.

“Estamos todos vivendo nosso céu e nosso inferno ao mesmo tempo. Então, quando eu falo alguma coisa, se for importante, aquela pessoa vai acolher e utilizar no dia-a-dia”.

Comunicadora ancestral, a artista coloca em cada mensagem que partilha a intenção “de que as pessoas fiquem bem e que vivam melhor”.

O propósito encaminha os seus passos para o Sacerdócio no Candomblé, que cultua como uma forma de preservação da presença de África no Brasil.

“A forma como a gente come, tanto as comidas, como os alimentos; a forma como nós cantamos, como nós dançamos, tudo isso que um africano que vai no Brasil vê, reconhece e diz ‘Isso é África’, foi preservado através do Candomblé”.

Muito mais do que uma religião, Nara realça que “o Candomblé é um lugar de resistência muito grande”.

Axé!

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Pais de Maria Luemba recordam a filha: “Foi, é, e sempre será o melhor de nós. A luz dela nunca se apagará”

Ladis Baltazar e David Luemba, pais de Maria Luemba, jovem angolana de 17 anos encontrada morta em circunstâncias suspeitas no passado dia 12 de Junho, em Sever de Vouga, Aveiro, recordam a “luz própria” e “alegria contagiante” da filha, num texto em que partilham “O que Maria representava” para ambos. As memórias, lidas na manifestação do último domingo, 29 de Junho, já depois do enterro, realizado na véspera, ouviram-se entre apelos à Justiça. “A forma brutal como a tiraram de nós é uma ferida aberta, profunda”, sublinham, garantindo: “Lutaremos até ao fim para que a verdade apareça, para que os culpados sejam responsabilizados, e para que o nome da Maria nunca seja esquecido”. Firmes, Ladis e David, reiteram: “A justiça será o nosso acto de amor por ela, agora que já não podemos protegê-la com os nossos braços”. Sensibilizados com a solidariedade que têm recebido, os pais de Maria agradecem “todas as manifestações de carinho, solidariedade, apoio e orações”, e notam que “esse calor humano tem sido um abraço invisível”, que os tem sustentado e dado forças para continuar. O Afrolink partilha a carta na íntegra.

Ladis Baltazar e David Luemba, pais de Maria Luemba, jovem angolana de 17 anos encontrada morta em circunstâncias suspeitas no passado dia 12 de Junho, em Sever de Vouga, Aveiro, recordam a “luz própria” e “alegria contagiante” da filha, num texto em que partilham “O que Maria representava” para ambos. As memórias, lidas na manifestação do último domingo, 29 de Junho, já depois do enterro, realizado na véspera, ouviram-se entre apelos à Justiça. “A forma brutal como a tiraram de nós é uma ferida aberta, profunda”, sublinham, garantindo: “Lutaremos até ao fim para que a verdade apareça, para que os culpados sejam responsabilizados, e para que o nome da Maria nunca seja esquecido”. Firmes, Ladis e David, reiteram: “A justiça será o nosso acto de amor por ela, agora que já não podemos protegê-la com os nossos braços”. Sensibilizados com a solidariedade que têm recebido, os pais de Maria agradecem “todas as manifestações de carinho, solidariedade, apoio e orações”, e notam que “esse calor humano tem sido um abraço invisível”, que os tem sustentado e dado forças para continuar. O Afrolink partilha a carta na íntegra.

Manifestação por Justiça para Maria Luemba, realizada no último domingo, 29, em Lisboa

O que Maria representava para nós, seus pais 

Falar da Maria é mergulhar num mar de luz, ternura e esperança. Nossa filha foi, e sempre será, um milagre em nossas vidas. Era impossível não notar a sua presença — não apenas por sua beleza exterior, mas pelo brilho que vinha de dentro, uma luz própria, rara, que iluminava tudo ao seu redor. Maria era feita de amor, de sonhos e de uma alegria contagiante que tocava todos que cruzavam seu caminho.

 Ela era mais do que nossa filha. Era nossa melhor amiga, nossa confidente, a razão de muitos dos nossos sorrisos e orgulho. Tinha o dom de transformar o ordinário em extraordinário, de fazer com que cada momento com ela fosse uma dádiva. Sempre teve um carinho especial por todos – por nós, seus pais, por seus irmãos, avós, tios, primos, amigos… Maria era dessas almas que sabiam amar e ser amadas.

Com apenas 17 anos, já demonstrava uma maturidade admirável e sonhava alto. Queria conquistar o mundo, não com arrogância, mas com gentileza, humildade e muito trabalho. Era uma jovem cheia de vida, com um futuro brilhante desenhado por Deus e impulsionado pelo seu próprio esforço. E, de forma cruel e brutal, isso tudo lhe foi tirado. Roubado. Interrompido.

Diante de tanta dor, nos faltam palavras que estejam à altura do que Maria foi para nós. Como pais, nos resta apenas o consolo de crer que ela não se foi – ela se transformou. A luz que ela era neste mundo agora brilha como estrela no céu, sentada ao lado do Pai Celestial. E mesmo na ausência, ela continua viva em nós, nas nossas memórias, nos nossos gestos, e no amor que nunca deixará de existir.

Agradecemos, de coração, todas as manifestações de carinho, solidariedade, apoio e orações que temos recebido de familiares, amigos, instituições e até de desconhecidos. Esse calor humano tem sido um abraço invisível que nos sustenta e nos dá forças para seguir. 

E agora, com o coração ferido, mas com fé inabalável, aguardamos que a justiça seja feita. Porque Maria merece. Porque todas as Marias merecem viver. E porque a luz dela nunca será esquecida. Nunca.

Maria não era apenas nossa filha, era um sopro de Deus em nossas vidas. Tinha o dom raro de transformar o ambiente com sua presença – bastava um sorriso seu para o dia parecer mais leve, bastava um abraço para todo o peso do mundo desaparecer. Ela tinha esse poder, suave e profundo, de tocar o coração das pessoas sem fazer esforço, apenas sendo quem era: doce, sincera, cheia de graça.

Era uma menina que sonhava com os olhos abertos. Sonhava em crescer, estudar, viajar, ajudar os outros… Sonhava em dar orgulho a seus pais – e como deu! Mesmo com tão pouca idade, Maria deixou um legado de amor, simplicidade, respeito e luz. Era admirada pela sua educação, pela forma como tratava os mais velhos, e pela empatia com os mais frágeis. Não havia arrogância nela, apenas uma bondade genuína e uma alegria transparente, dessas que vêm da alma. 

Ela não merecia esse fim. Nenhuma filha merece. A forma brutal como a tiraram de nós é uma ferida aberta, profunda, que clama por justiça. Não apenas por nós, seus pais, mas por tudo o que ela representava – por tudo o que ela ainda poderia ser. Lutaremos até ao fim para que a verdade apareça, para que os culpados sejam responsabilizados, e para que o nome da Maria nunca seja esquecido. A justiça será o nosso ato de amor por ela, agora que já não podemos protegê-la com os nossos braços.

E enquanto esperamos por essa justiça, abraçamos cada gesto de carinho que temos recebido. As mensagens, as orações, os abraços silenciosos, os olhos marejados de tantos que, mesmo sem conhecê-la profundamente, sentiram a dor dessa perda. Obrigado, de coração, a cada um que tem caminhado connosco nessa travessia tão difícil.

Maria agora vive em outro plano, onde não há dor, nem injustiça, nem medo. Vive em Deus. E por mais que nos faltem forças, continuaremos de pé – por ela. Porque se a vida nos tirou Maria do presente, o amor que sentimos por ela nos dará forças para honrá-la todos os dias, com coragem, com dignidade, com memória.

Nossa filha foi, é, e sempre será o melhor de nós. A luz dela nunca se apagará.  

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“Contado por Mulheres” - Carta Aberta contesta falta de pluralidade do projecto

Pela segunda temporada a caminho do pequeno ecrã, o projecto “Contado por Mulheres”, uma produção da Ukbar Filmes em parceria com a RTP, sobressai pela ausência de diversidade. “Salta à vista que nem uma das mulheres escolhidas para ambas as temporadas do projecto é negra ou racializada, uma mulher com deficiência, ou uma mulher trans”, denuncia-se numa carta aberta dirigida à Ukbar Filmes, à RTP, e às 20 realizadoras que integram esse projecto. O Afrolink divulga a carta na íntegra, subscrita por mais de 430 pessoas, e que levanta questões fundamentais. Desde logo, estará a Ukbar Filmes disponível para assumir a falha “e tomar medidas com vista a corrigir os moldes de produção da segunda temporada e subsequentes, de forma a reflectir a pluralidade das mulheres artistas em Portugal?”.

Pela segunda temporada a caminho do pequeno ecrã, o projecto “Contado por Mulheres”, uma produção da Ukbar Filmes em parceria com a RTP, sobressai pela ausência de diversidade. “Salta à vista que nem uma das mulheres escolhidas para ambas as temporadas do projecto é negra ou racializada, uma mulher com deficiência, ou uma mulher trans”, denuncia-se numa carta aberta dirigida à Ukbar Filmes, à RTP, e às 20 realizadoras que integram esse projecto. O Afrolink divulga a carta na íntegra, subscrita por mais de 430 pessoas, e que levanta questões fundamentais. Desde logo, estará a Ukbar Filmes disponível para assumir a falha “e tomar medidas com vista a corrigir os moldes de produção da segunda temporada e subsequentes, de forma a reflectir a pluralidade das mulheres artistas em Portugal?”.

Realizadoras seleccionadas para a segunda temporada de “Contado por Mulheres”

Carta aberta à Ukbar Filmes, à RTP e às mulheres escolhidas para o projecto “Contado por Mulheres”

Foi recentemente anunciada a segunda temporada do projecto "Contado por Mulheres", uma produção da Ukbar Filmes em parceria com a Rádio e Televisão de Portugal (RTP).

Nesta segunda temporada serão produzidos 20 telefilmes dirigidos por 20 mulheres realizadoras portuguesas, que abordarão questões inspiradas nos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU).

Relembre-se que para a primeira temporada do projecto “Contado por Mulheres” (2022), segundo o comunicado de imprensa da altura, foram convidadas “dez realizadoras de várias gerações, que possuem um forte sentido narrativo, com uma grande experiência, ora na representação ora na publicidade”, a saber: Ana Cunha, Anabela Moreira, Cristina Carvalhal, Daniela Ruah, Diana Antunes, Fabiana Tavares, Laura Seixas, Maria João Luís, Rita Barbosa, Sofia Teixeira Gomes. 

Nesta temporada, a Ukbar Filmes e a RTP convidaram, não dez, mas vinte realizadoras. A saber: Ana Cunha, Carolina Rosendo, Cláudia Alves, Cristina Carvalhal, Fabiana Tavares, Filipa Ruiz, Francisca Alarcão, Joana Areal, Joana Barbosa, Joana Botelho, Joana Machado Madeira, Laura Andrade, Lúcia Moniz, Margarida Leitão, Margarida Vila-Nova, Maria João Bastos, Mónica Santos, Rita Barbosa, Rita Pestana, Sandra Faleiro. 

Salta à vista que nem uma das mulheres escolhidas para ambas as temporadas do projecto é negra ou racializada.

Salta à vista que nem uma das mulheres escolhidas para ambas as temporadas do projecto é uma mulher com deficiência.

Salta à vista que nem uma das mulheres escolhidas para ambas as temporadas do projecto é trans.

Salta à vista que parte das realizadoras escolhidas para a segunda temporada do projecto é repetente na experiência.

Não salta à vista, mas facilmente se encontram ao alcance do toque ou da voz, num qualquer motor de pesquisa, os 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU – os tais cujas questões inspiram as 20 narrativas cinematográficas da segunda temporada do “Contado por Mulheres” – a saber: 1. Erradicar a pobreza; 2. Erradicar a fome; 3. Saúde de qualidade; 4. Educação de qualidade; 5. Igualdade de género; 6. Água potável e saneamento; 7. Energias renováveis e acessíveis; 8. Trabalho digno e crescimento económico; 9. Indústria, inovação e infra-estruturas; 10. Reduzir as desigualdades; 11. Cidades e comunidades sustentáveis; 12. Produção e Consumo Sustentáveis; 13. Acção Climática; 14. Proteger a Vida Marinha; 15. Proteger a Vida Terrestre; 16. Paz, Justiça e Instituições Eficazes; 17. Parcerias para a Implementação dos Objectivos.

Saltam à boca as perguntas:

Para a Ukbar Filmes,

– Como justificam a total exclusão em ambas as temporadas de mulheres artistas, historicamente invisibilizadas, cujos trabalhos representam um compromisso real com as questões de género e das desigualdades – muitas das quais com percursos profissionais consolidados, e que vêm contribuindo substantivamente para um sector artístico e cultural mais fecundo, plural e transformador?

– Estão disponíveis para assumir esta falha e tomar medidas com vista a corrigir os moldes de produção da segunda temporada e subsequentes, de forma a reflectir a pluralidade das mulheres artistas em Portugal?

Para a RTP,

– Como justificam a total exclusão de mulheres negras, de mulheres racializadas, de mulheres com deficiência e de mulheres trans num projecto financiado por dinheiros públicos e alinhado com os ODS da ONU?

–  Quais os mecanismos de inclusão, consulta e transparência que foram (ou não foram) accionados no processo de selecção das realizadoras em ambas as temporadas? 

Para as mulheres, as realizadoras escolhidas: Ana Cunha, Anabela Moreira, Carolina Rosendo, Cláudia Alves, Cristina Carvalhal, Daniela Ruah, Diana Antunes, Fabiana Tavares, Filipa Ruiz, Francisca Alarcão, Joana Areal, Joana Barbosa, Joana Botelho, Joana Machado Madeira, Laura Andrade, Laura Seixas, Lúcia Moniz, Margarida Leitão, Margarida Vila-Nova, Maria João Bastos, Maria João Luís, Mónica Santos, Rita Barbosa, Rita Pestana, Sandra Faleiro, Sofia Teixeira Gomes,

– Como se posicionam perante a total ausência de mulheres negras, de mulheres racializadas, de mulheres com deficiência e de mulheres trans no projecto “Contado por Mulheres”?

– Que compromissos ou acções concretas estão dispostas a assumir – enquanto mulheres, artistas e cidadãs – para que a selecção das realizadoras da segunda temporada seja revista? 

Aguardamos pelas vossas respostas. Recusamos o vosso silêncio. A decisão de não integrar mulheres negras, mulheres racializadas, mulheres com deficiência e mulheres trans, e as suas perspectivas, não é um gesto aleatório. É uma escolha estratégica, política, que perpetua uma visão estreita sobre quem pode narrar, representar, imaginar comunidades, sociedades, países, mundos.

Ser feminista é uma prática interseccional que exige representatividade, compromisso, coragem, elevação.

Lisboa, 30 de Junho de 2025

Subscrevem,

Admila Sofia Tavares Cardoso, artista

Afrolink, rede

Ágata de Pinho Lopes, cineasta, actor

Aissa seidi, artista plástica, encadernadora, conservadora de arte, professora

Alberty luiz lemos barroso, mediador sócio cultural

Alegria Gomes, artista multidisciplinar

Alexander Jorge David Cartaxo, actor e realizador

Ali Pereira, artiste

Áliffe Barbosa Santos, auxiliar de enfermagem

Alla Falieri, artista

Amaya Sumpsi, realizadora

Amina Bawa, jornalista, produtora cultural

Ana Balona de Oliveira, historiadora de arte, curadora

Ana Carolina Gonçalves Magalhães Varela , artista multidisciplinar

Ana Carolina Mariano Gonçalves, assistente de produção

Ana Catarina Teixeira Pereira, operadora de Infografismo

Ana Cravid, manager nos seguros

Ana Filipa Mendes Tavares, professora

Ana Isabel Campos Bragança, arquitecta paisagista, gestora de projectos

Ana Isabel Duarte, gerente

Ana Isabel Fernandes Miranda, professora

Ana Isabel Vieira Fernandes, animadora sociocultural

Ana Joana Pereira Amorim, produtora executiva

Ana Mafalda Almeida, psicóloga

Ana Manhique, técnica de museologia

Ana Maria, aposentada, licenciada em LLM

Ana Maria Albuquerque Medeiros, professora

Ana Oliveira, intérprete

Ana Paula Costa, investigadora

Ana Rita Costa Gomes, mediadora intercultural

Ana Rita Monteiro da Cruz, actriz

Ana Rita Monteiro dos Santos, actriz

Ana Rita Xavier, coreógrafe

Ana rod, puta

Ana Sofia Martins, actriz

Ana Sofia Rodrigues da Silva Montes Palma, administrativa

Ana Valentim, actriz

Anabela Rodrigues, coordenadora da associação Teatro do Oprimido

Anaïs Ichiban, desenhadora de moda

Anaísa Lopes, coreógrafa, bailarina, professora

Anca Usurelu, produção, edição de livro

Andreia Byda, jurista

Andreia Nunes, animadora 2D

Andreia Nunes, produtora, professora

Andreia Ruivo, artista

Andreia Vanessa Morais Araujo, auxiliar de saúde

Angela Guerreiro, artista independente

Ângela Tavares, Kyc Officer

antonio ferreira, artista

António Pedro Bollaño Romero Bernardo Godinho, actor, dançarino

Aoaní, actriz, encenadora

Ariana Helena Varela Furtado, professora

Ariel de Bigault, autora, realizadora

Arlindo Camacho, fotógrafo

Associação Cultural Nêga Filmes, promotora da Cultura Negra

Associação Teatrolobby , companhia de teatro

Atena Barbosa, criadora, intérprete, produtora

Aveiro Feminista, colectivo

Barbara Almeida, médica

Barbara Lisana Mendes Freire Lino, cozinheira

Bárbara Wahnon, cantora, empresária

Be Dias, criadora, bailarine, performer

beatriz cruz freches de sousa teodosio, actriz

Beatriz Gonçalves Maciel, estudante

Beatriz Vasconcelos, assessora de comunicação cultural

Bella Baptista da Cruz, Starving Autist & surviving, with poverty afected disabled Artist

bibiana Picado Mendes, dramturgista

Binete upa undonque, actriz

Branca Clara das Neves, escritora

Bruno Alexandre Manhiça Bento, actor

Camila Fonseca Santos Brandião, AAL

Carla Alexandra da Conceição Madeira, actriz, docente de teatro

Carla Costa Gomes, actriz

Carla Ruiz Filipe, directora de produção

Carla Sofia Fonseca Monteiro, naturopata

Carlos Pereira humorista, argumentista

Carolina Alves, estudante

Carolina Archangelo Pereira da Silva, enfermeira

Carolina Caramelo, DIT

Carolina Coimbra, doula

Catarina Borges, designer

Catarina Negrão, investigadora

Catarina Rosa branco Pereira, estudante

Catarina Simões, produtora

Catarina Sofia da Cruz Ferreira, estudante

Catarina Syder Fontinha, actriz, mediadora intercultural, comunicadora, activista

Cátia Salgueiro, professora, argumentista

Cátia Virgínia Semedo Ramos, mentora de mulheres

Célia Maria de Sousa Gonçalves Pires, produtora de audiovisuais

Celia Sofia da Silva Fechas, actriz

Celina Bermudez Vogensen, professor de inglês

César Melo, actor

Cine Contra As Paredes, Cine Clube

Cire Ndiaye, artista

Cláudia Cristina Ferreira Semedo, actriz, encenadora

Claudia Galhós, jornalista, escritora

Cláudia Marques, investigadora

Cláudia Matos, gestora cultural

Cláudia Múrias, psicóloga social

Cláudia Sofia Dores Ferreira Martins, professora de História do 3° ciclo e secundário

Claudia Sofia Sevivas Ribeiro, professora universitária

Cláudio Martins da Silva Alves, crítico de cinema, figurinista

Cleo Diára, actriz, encenadora

Cleonise Malulo Pinho, actriz

Cristina Faria, técnica de documentação e património

Cristina Maria Lopes Tavares, professora

Cristina Maria Metelo Reto Carvalhal, actriz, encenadora

Cristina Roldão, professora

Cynthia Njuguna, estratega de marketing

Daniela Rosado, economista

Danielle Pereira de Araújo, cientista política

Dejana R.F., profissional setor turístico

Denise Fernandes, realizadora, argumentista

Denise Santos, designer

Dhyra, criativa

Diana Coutinho Almeida, herbalista, cozinheira

Diana Sofia, produtora dança

Diana Vieira de Campos Almeida, tradutora

DIDI CANDIDO, artista

Diogo Soares Martins, cineasta

Domingas Monteiro Robalo, design

Efraim Teles, professor

Ekua Yankah, epidemiologista

Eleonor Mata, psicóloga

Eliana NZualo escritora, consultora

Elisa Micaela Cordeiro dos Reis, decoradora

Eloísa Ascensão Fortes Correia, artista

Elsa Ferreira, head of organizational development

Eneida Tavares, designer de produto

Estevão Soares, gerente geral de hotel

Estionefa Yamara Colombo Ferreira, gestora

Eunice Pais, artista

Fábio Monteiro, artista

Fernanda Curi, arquiteta

Fernanda Polacow, guionista

Filipa Bossuet, artista plástica, jornalista

Filipa Isabel Canhestro Barros Barriga, bibliotecária

Filipa Pissarra, jurista

Flavia Gusmao Figueira, actriz , encenadora, formadora

Francisca Mantas Pinto, bailarina, coreógrafa

Francisca Maria de Oliveira Martins, artista, estudante

Gabriela Pereira Lima,assistente de realização

Gessica Correia Borges, investigadora, artista

Gil Filipe Monteiro Pinto, actor

Gio Lourenço, actor , criardor, performer, bailarino

Gisela Casimiro, escritora e artista

Gisele Fernandes, psicóloga

Gloria García, argumentista

Grupo EducAR, educação antirracista

Hélder Ricardo Agulhas Jaques, IT - sistemas de informação

Helena Estrela Baptista Vasconcelos Barbosa, estudante

Helena Maria da Silva Marques, desempregada

Helena Vicente, transaction officer

Henda Vieira-Lopes, psicólogo clínico, terapeuta familiar sistémico

Henrique Prudêncio, realizador, editor

Hilary Owen, professora catedrática

Hoji Fortuna, actor

Hugo Henrique Ngungui Narciso, actor

Humberto Giancristofaro Carvalho, realizador

Inês Alegria, conservadora restauradora

Inês Francisco Pantaleão, actriz

Inês Margarida Pereira Ventura, técnica superior

Ines Prats Azevedo Gomes, artista plástica

Inocência Mata, professora

Isabel Branco, arquitecta

Isabel Moura Mendes, gestora cultural

Isabél Zuaa, artista multidisciplinar

Isabella Permanschlager, tradutora

Ivanova Araújo, gestora de propriedades

Izária Mario Sá, animadora sociocultural

Janielly Braz Ferreira, psicóloga

Jo Castro, artista

Joana Baptista Costa, designer

Joana Barra Vaz, cineasta, música

Joana Brito Silva, actriz

Joana Campelo Fernandes Mendes Barata, actriz

Joana da costa Teixeira, assistente social

Joana Dágua, artista

Joana Grande, técnica de relações externas

Joana Isabel Teixeira de Sousa Ribeiro, socióloga

Joana Morais, professora

Joana Peralta, produtora de cinema

Joana pereira, assistente técnico

Joana Xavier, bióloga

João Bruno Figueira Sousa Silva, professor

João Guilherme Ribeiro Delgado, professor

João Mineiro antropólogo, investigador

João Nuno Pinto, realizador

João Pedro Barriga Martins, investigador

João Salaviza, realizador

Joãozinho da Costa, actor

Joaquim Paulo Nogueira, dramaturgo

Jorge Cipriano Santos Júnior, bailarino, coreógrafo

Jorge Goncalves, diretor de som

José António de Jesus Pires, encenador

José Ramón Cárdenas Salazar, argumentista, realizador

José Rui Rosário, funcionário público

Joyce Souza, actriz, professora

Justice Nnanna, director, produtor

Karla Juliana Pinheiro Melo, professora

Katia Canton, escritora

Kátia Lorena Manuel Nobre, assistente técnica na Função Pública

Katiana Silva, consultora

Kitty Furtado, investigadora

Laís dos Anjos da Costa Andrade, realizadora, guionista

Lara Vanessa Cossa Mesquita, actriz, escritora, realizadora

Laura Brito, socióloga, mentora pedagógica

Laura Magalhães, editora audiovisual

Lee Meneres, artista

Leonardo Mouramateus, director

Leticia, fotógrafa

leve leve colectivo, associação cultural

Licinia Carvalheiro, economista

Lígia Roque, actriz, encenadora

Lisete Eunice Barroso Ornelas Da Fonseca

Lou Loução, realizadora, montadora, produtora

Lubanzadyo mpemba, cinéaste

Lucas Brasileiro, estafeta

Luciana Maruta, jornalista

Lucília Raimundo, intérprete, criadora multidisciplinar

Lucinda Loureiro, actriz

Luís Filipe Rodrigues, jornalista

Luís Gonçalo, consultor

Luísa Maciel Waddington, estudante

Luisa Maria Almeida, professora

Luísa Maria Simões da Conceição Francisco, arquivista

Luísa Rodrigues, técnica de cultura na função pública

Luísa Sol, arquitecta

Luiz Fernando Moreira, chef cozinha

Madalena Rocha, formadora, activista

Mafalda Filipa Bento Rodrigues, engª agronómica, produção executiva

Mafalda Matos, cenógrafa

Maíra Zenun, artista visual, socióloga

Maite Sobrino, consultora

Manuela Curtiss Alvarenga Vitor Foureaux, set designer

Manuela Paulo, actriz

Manuela Ribeiro Sanches, investigadora

Márcia, actriz

Márcia Alexandra Tavares Semedo, actriz

Márcia Almeida Teixeira, técnica de Produção Alimentar

Marco Mendonça, actor

Marcus Veiga, músico

Margarida Rendeiro, professora universitária, investigadora

Margarida Serrão, produtora cultural

Maria Ana Freitas, produção cultural

Maria Apolonia, consultora ambiental e social

Maria Beatriz Laschi Franco, bailarina

Maria do Livramento Andrade Reis Trovoada, técnica auxiliar de saúde

Maria Inês Araújo Amorim, assistente de comunicação

Maria Inês Castro e Silva, professora universitária

Maria João Brilhante, investigadora

Maria João Pessoa, bibliotecária

Maria José Prata pinheiro Antunes, professora

Maria Miguel Rodrigues, estudante

Maria Pinto, ilustradora, designer

Maria Ribeiro, humanitária

Maria Vieira, consultora comercial

Maria Vilma Queiroz, professora

Maria Vlachou, gestora cultural

Mariama Jaló Injai, coordenadora de projetos

Mariana Correia Gomes, actriz, técnica de produção

Mariana da Costa Viana Guarda, actriz, realizadora

Mariana de Franco Marçal, médica

Mariana Desidério Ramos, cabeleireira

Mariana Freire da Fonseca, actriz

Mariana Leão Moreira da Cunha, designer

Mariana Sá Nogueira, costureira

Mariana Silva, estudante

Mário Jorge Batista Coelho, actor, encenador

Mário Lino, comunicação

Mário Rui Martins do Souto, técnico superior de Antropologia na Câmara Municipal de

Lisboa

Marta, estudante

Marta Alexandra Arezes Mortágua, artesã têxtil

Marta Amorim, gestora de comunicação

Marta Dineia Gamito, programadora cultural

Marta Ferreira, assistente de imagem

Marta Lança Rodrigues, editora do buala

Marta Luísa Macedo Calejo, artista visual

Marta Martins, gestora cultural

Marta Morais, directora financeira

Marta Nunes, designer de comunicação

Marta Pinto Machado, investigadora, artista

Marta Sousa Ribeiro, produtora, realizadora

Martim Samora Correia Pedroso, actor, encenador, professor

Martinho Pereira Filipe, produtor

Matilde, artista

Maurícia Barreira Neves, coreógrafa

Mauro Hermínio, criador, produtor

Melissa de Barros Viana, terapeuta junguiana

Melissa Rodrigues, artista, curadora e arte-educadora

Micol brazzabeni, mediadora social

Miguel Ângelo Abreu Raposo, actor

Miguel Branco, dramaturgo

Miguel Clara Vasconcelos, cineasta

Miguel Fernandes Garcia Correia de Paiva, videógrafo

Miguel Maia, encenador, dramaturgo

Miguel Marcos José de Barros, sociólogo

milene massena coroado, cinema

Mina Andala, actriz

Monica cosas, produtora

monica de miranda, realizadora, artista visual

Mulheres Negras Escurecidas, colectivo

Nádia Yracema, actriz

Naír pereira da Costa Noronha, artista, socióloga

Namalimba Besteiro Coelho Ferreira, comunicadora cultural

Namíbia Isidoro, poeta

Nara António Correia Pacheco, art, call center

Natália Laureano, artista

Neusa Sousa, jornalista

Neusa Trovoada, artista multidisciplinar

Nicolly fierce da Silva,autónomo

Nuna, actriz (futura realizadora)

Nuno Coelho, professor universitário, investigador, curador, designer

Nuno Filipe Pessoa Sabroso, professor de dança

Nuno Norte, editor de vídeo

Octávio Fernando Rafael Coroado, tec. instalações mecânicas (AVAC) e Energias

Renováveis

Olga Morais Araújo, doméstica

Patrícia Azevedo da Silva, editora, tradutora

Patricia dos Santos Gomes, cozinheira

Patricia Ferreira, professora

Patricia Geula realizadora, argumentista

Patricia Loureiro, directora de operações

Patrícia Sofia da Silva Maio Maio, produtora

Paula Cristina da Silva Ribeiro Diogo de Carvalho, actriz, encenadora, produtora

Paula Cardoso, fundadora da rede Afrolink

Paula Duarte Lopes, professora

Paula Nascimento, curadora

Paulo Gomes, analista de TI

Paulo Guimarães, figurinista

Paulo Jorge Pinto Raposo, docente universitário

Pedro Azevedo, programador musical

Pedro Barbeitos, actor

Pedro Gomes, engº ambiente

Pedro Henrique Correia Barbosa, produtor cultural

Pedro Miguel Simões Baptista, actor, encenador

Pedro Schacht Pereira, professor universitário

Pedro Zegre Penim, actor, encenador, director artístico

Pocas Pascoal, realizadora

Quênia Ribeiro, professora

Rachel Castanheira, professora

Rafael Felipe da Cunha Francisco, bancário

Raquel Branco Rodrigues Freire, realizadora, argumentista

Raquel Da Silva, direção de casting, produtora

Raquel Lima, poeta, investigadora

Rebeca Luísa Machado Da Cunha, actriz

Rebeca Paiva, professora

Reimy Solange Chagas, psicóloga

Renata Maida Freire, empresária

Renée Nader Messora, realizadora

Ricardo Lopes Romero, trabalhador independente

Rina Golinets, estudante

Rita Cássia, antropóloga, artista-pesquisadora

Rita de Jesus Ramos da Costa, directora artística e executiva

Rita Ferreira, designer

Rita Maia, DJ, realizadora, curadora

Rita Pires dos Santos, mediadora Cultural

Rodrigo Ribeiro Saturnino, artista e Pesquisador

Rodrigo Soares Tirso dos Santos, futebolista

Roxana Ionesco, actriz, encenadora

Rui André Soares, director da Comunidade Cultura e Arte

Rui Carlos de Melo, músico

Rui Miguel Bogalho Teixeira Xavier, director de fotografia

Rui Pedro Lourenço de Paiva, professor

Rui Pinheiro, fotógrafo

Rute Rocha Ferreira, artista (actriz, intérprete musical, etc)

Sandra Gonçalves, administrativa

Sandra Rocha fotógrafa, realizadora

Sao José Correia, actriz, realizadora

Sara artista, cineasta

Sara de Castro, actriz

Sara Mendonça de Sousa Dias de Brito, arqueóloga

Sara Morais, escritora

Sara Rebello da Silva, autora

Sara Roriz Sequeira Guerra Carinhas, actriz, encenadora

Sara Simões, arqueóloga

Sara Yasmine, música

Sarah Diedro Jordão, consultora de comunicação

Selma Lúcia Tito Uamusse Gomes, música

Sérgio Magos Jorge de Sousa Vitorino, intérprete, tradutor

Silvania de Barros, gestão, finanças

Silvia Cardoso, assessora política

Sofia da Palma Rodrigues, jornalista

Sofia de Melo Gago Resende da Vitória, artista

Solange Malisa da Graça Salvaterra Pinto, administrativa

Sónia de Jesus Monteiro Barbosa Fernandes, administrativa

Soraia Mendes Tavares, actriz

SOWING_ARTS, produtora

Stela, actriz

Stella Carneiro, realizadora, argumentista

Susana Boletas, antropóloga

Susana Dias, directora manutenção

Susana Martínez, arqueóloga

Suse, PT

Tânia Cristina de Oliveira Paradela Dias, operadora de Loja

Tânia Filipa dos Santos Alves Rosa, actriz

Tânia Santos, programadora

Tatiana Lemos do Nascimento, produtora cultural

Teatro GRIOT, companhia de teatro

Telma Santos, executive assistant

Telma Silva, assistente social

Teresa Carvalho Costa, antropóloga, professora

Thiago Justino, actor

Tiago Barbosa, actor

Tiago Ganhão, profissional da cultura

Tiago Siopa, cineasta

Tita Maravilha, actriz

Tota Alves, argumentista e realizadora

Ulika Gisela da Paixão Franco dos Santos, investigadora doutoranda em História

Valdivia Medina Santos, designer de experiências, terapeuta tântrica

Vanessa Sanches, editora

Vanessa Alexandra de Jesus Lopes, artista, terapeuta, finalista do curso de Medicina

Tradicional Chinesa

Vanessa Fernandes, jurista

Vanessa Ferraz Amaral, actriz, astróloga

Vanessa Patrícia Moreira Sanches, jornalista

Vânia Cristina Tavares Andrade, educadora

Vânia Doutel Vaz, bailarina, coreógrafa

Vânia Gala, professora universitária, investigadora, coreógrafa

Vânia Maria Mourão Araújo, figurinista

Vânia Ramos, psicóloga

Vasco Branco Rodrigues Freire, médico

Vera Gomes, técnica comercial

Vera Mantero, coreógrafa

Veronica Santos, enfermeira

Vivian Avellar, jornalista

Welket Bungué, actor, artista do audiovisual

Yasmin Falcão, designer de moda sustentável

Yolanda Santos, actriz

Yonara Mateus, formadora, mentora

Zia Soares, encenadora, actriz

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Justiça, Vidas Negras Paula Cardoso Justiça, Vidas Negras Paula Cardoso

Como o ódio racial que matou Ademir Moreno está a ser reduzido a jogos de palavras

Sem a presença de jornalistas na sala de audiências, que deixaram de acompanhar o processo ao ponto de terem ignorado o início do julgamento, o caso do assassinato de Ademir Araújo Moreno, cruelmente agredido em Março de 2024, evidencia como as vidas negras (não) importam nesta sociedade. A desvalorização das agressões que sofremos, ardilosamente transformadas em narrativas que nos demonizam e nos responsabilizam pelos nossos próprios homicídios, tem agora no Tribunal de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, nos Açores, um novo palco. É aqui que a defesa de Adriano Silva Pereira, apontado por inúmeras testemunhas como o assassino de Ademir, tem recorrido a incontáveis “armadilhas” de retórica para eliminar a acusação de “ódio racial”, presente desde os primeiros relatos do crime, cometido à porta de uma discoteca, na ilha do Faial. O jogo de palavras – apurou o Afrolink junto de uma pessoa que assistiu à segunda sessão do julgamento, na passada terça-feira, 17 – cai no absurdo de fazer de um “você” fundamento de absolvição. Para Elísio Lourenço, advogado do arguido, importa apurar se o seu cliente apregoou “Não tenho medo de pretos”, ou “Não tenho medo de vocês, pretos” para determinar se o assassinato teve motivação racial. Falando à imprensa – que apesar de não se ter dado ao trabalho de acompanhar a sessão, apareceu no final para registar declarações –, o jurista confirmou que Adriano Silva Pereira “assumiu ser o causador da morte, porque foi ele que desferiu o soco que veio a revelar-se fatídico”, mas reduziu o acto bárbaro a “uma rivalidade apenas, mais nada”, ainda que “haja componente de se tratar de brancos ou negros”. Não é isso, contudo, que indicam vários testemunhos recolhidos pela acusação, convergentes na descrição do arguido como um racista empedernido. A próxima sessão está marcada para dia 2 de Julho, e, com ela, renasce a esperança de que a Justiça seja feita. “Para mim, ele teria que apanhar no mínimo 20 anos”, considera ao Afrolink Lurdes Ferreira, a viúva de Ademir, que recorda o marido como “uma pessoa carinhosa, amigo do amigo, sempre de bem com a vida”. Morreu por ser negro.

Sem a presença de jornalistas na sala de audiências, que deixaram de acompanhar o processo ao ponto de terem ignorado o início do julgamento, o assassinato de Ademir Araújo Moreno, cruelmente agredido em Março de 2024, evidencia como as vidas negras (não) importam nesta sociedade. A desvalorização das agressões que sofremos, ardilosamente transformadas em narrativas que nos demonizam e nos responsabilizam pelos nossos próprios homicídios, tem agora no Tribunal de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, nos Açores, um novo palco. É aqui que a defesa de Adriano Silva Pereira, apontado por inúmeras testemunhas como o assassino de Ademir, tem recorrido a incontáveis “armadilhas” de retórica para eliminar a acusação de “ódio racial”, presente desde os primeiros relatos do crime, cometido à porta de uma discoteca, na ilha do Faial. O jogo de palavras – apurou o Afrolink junto de uma pessoa que assistiu à segunda sessão do julgamento, na passada terça-feira, 17 – cai no absurdo de fazer de um “você” fundamento de absolvição. Para Elísio Lourenço, advogado do arguido, importa apurar se o seu cliente apregoou “Não tenho medo de pretos”, ou “Não tenho medo de vocês, pretos” para determinar se o assassinato teve motivação racial. Falando à imprensa – que apesar de não se ter dado ao trabalho de acompanhar a sessão, apareceu no final para registar declarações –, o jurista confirmou que Adriano Silva Pereira “assumiu ser o causador da morte, porque foi ele que desferiu o soco que veio a revelar-se fatídico”, mas reduziu o acto bárbaro a “uma rivalidade apenas, mais nada”, ainda que “haja componente de se tratar de brancos ou negros”. Não é isso, contudo, que indicam vários testemunhos recolhidos pela acusação, convergentes na descrição do arguido como um racista empedernido. A próxima sessão está marcada para dia 2 de Julho, e, com ela, renasce a esperança de que a Justiça seja feita. “Para mim, ele teria que apanhar no mínimo 20 anos”, considera ao Afrolink Lurdes Ferreira, a viúva de Ademir, que recorda o marido como “uma pessoa carinhosa, amigo do amigo, sempre de bem com a vida”. Morreu por ser negro.

As demonstrações de ódio racial de Adriano Silva Pereira, acusado de assassinar Ademir Araújo Moreno num contínuo de agressões racistas, pareciam há muito fadadas para se transformarem em cadastro.

“O arguido é conhecido na comunidade e entre as pessoas da sua geração como pessoa conflituosa e que, em saídas nocturnas, se envolve facilmente em situações de confrontos físicos”, lê-se na acusação do Ministério Público, a que o Afrolink teve acesso.

O documento refere que, a 9 de Março, dias antes da fatídica madrugada do homicídio, “sem qualquer motivo que o justificasse”, Adriano provocou outro homem negro, dirigindo-lhe vários insultos.

“Pretos do caralho! Vêm para aqui armar confusão! Vão para a vossa terra!”, disparou o açoriano de 24 anos, impassível diante dos apelos de pacificação.

“Mas tu pensas que és quem para me mandar relaxar??”, contrapunha a quem aconselhava calma, reiterando as ofensas: “Esses pretos pensam que eu tenho medo deles!! Venham!”.

A violência racista, vociferada enquanto batia “com o punho cerrado no próprio peito”, acabou por escalar na madrugada de 17 de Março de 2024, no exterior da discoteca B-Side, na ilha açoriana do Faial.

Segundo várias testemunhas ouvidas pelas autoridades, num primeiro momento o arguido atingiu Ademir com “um a três socos”, mas como este se conseguiu defender, e acabou protegido por outras pessoas que saíram em seu socorro, o agressor acabou por fugir. O assunto parecida resolvido, mas Adriano Pereira não desistiu do ataque.

“Pelas 5h51m, ao passar junto de Ademir Moreno, e sem que nada o fizesse prever, o arguido dirigiu-se-lhe determinada e rapidamente, impossibilitando qualquer reacção deste, e desferiu-lhe um forte murro na cabeça na área temporal esquerda”.

Os factos, reconstituídos pela acusação, precipitaram a queda de Ademir que, “desamparado”, bateu “com a parte de trás da cabeça no chão, perdendo a consciência”.

Assistido no local pelos Bombeiros Voluntários da Horta, o cabo-verdiano naturalizado português foi transportado para o hospital, onde viria a falecer na noite do dia seguinte. Tinha 49 anos, era casado com Lurdes Ferreira, companheira há quase duas décadas e meia, e pai de Luana Moreno, de 21 anos.

O desfecho trágico aconteceu “em consequência directa da conduta” de Adriano Silva Pereira, concluiu o Ministério Público, facto reconhecido pelo próprio agressor.

“O arguido assumiu ser o causador da morte, porque foi ele que desferiu o soco que veio a revelar-se fatídico”, reconhece o seu advogado, Elísio Lourenço, sublinhando que “a única argumentação da defesa tem a ver com uma tentativa permanente de afastar o ódio racial”.

Falando à imprensa, na passada terça-feira, 17, no final da segunda sessão do julgamento – que decorre desde 5 de Junho no Tribunal de Angra do Heroísmo, na ilha açoriana da Terceira –, o jurista reduziu o acto bárbaro do seu cliente a “uma rivalidade apenas, mais nada”, ainda que “haja componente de se tratar de brancos ou negros”.

A tese da defesa evidencia a urgência de criminalização do racismo – conforme reivindica a iniciativa legislativa cidadã lançada no final do ano passado –, e alimenta uma revoltante sensação de injustiça.

“A própria advogada receia que a acusação de ódio racial caia por terra”, lamenta Lurdes Ferreira, viúva de Ademir e mãe da sua filha única.

“Para mim, ele teria que apanhar no mínimo 20 anos”, considera ao Afrolink, enquanto recorda o marido como “uma pessoa carinhosa, amigo do amigo, sempre de bem com a vida”, e incapaz de viver em conflito.

“Sempre que via uma discussão, tentava separar”, conta Lurdes, lembrando que os relatos sobre aquela trágica madrugada indicam que interveio para acabar com uma confusão entre duas jovens mulheres. No caso, a alegada namorada do arguido e uma amiga, de quem teria ciúmes. 

“Quis tirar a vida a Ademir, movido por ódio racial”

O retrato amistoso e conciliatório de Ademir contrasta com a violência e crueldade atribuída nos autos a Adriano Silva Pereira.

“O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, e bem sabia que, ao atingir Ademir Moreno com um soco na têmpora esquerda estando este alcoolizado e sendo apanhado de surpresa, o mesmo cairia ao chão, desamparado e viria a bater com a cabeça no solo, como veio a suceder”.

Os factos, realça a acusação, revelam que Adriano “quis tirar a vida a Ademir (…) movido por ódio racial contra o mesmo, por ser afrodescendente, sentimento negativo que expressou ao longo da noite, nos momentos prévios ao fatal desfecho”.

Sem nunca medir as ofensas, repetidas qual mantra do orgulho racista – “Pretos do caralho! Vêm para aqui armar confusão! Vão para a vossa terra!” –, o arguido é agora apresentado pela defesa como alguém que ‘até tem amigos pretos’.

O esforço do advogado Elísio Lourenço de apagar o ódio racial evidenciado na acusação foi notório na sessão da passada terça-feira.

Segundo apurou o Afrolink, junto de uma pessoa que esteve em tribunal, a defesa do arguido tem recorrido a incontáveis “armadilhas” de retórica para transformar um crime hediondo num mero infortúnio.

“Basicamente, a estratégia tem sido pôr tudo em causa. O advogado tem insistido para saber se o empurrão [a Ademir] foi antes ou depois do soco, e se ele caiu por causa de um ou de outro. Claramente, quer dizer que foi um acidente: ele empurrou e, por acaso, o Ademir morreu”.

O jogo de palavras cai no absurdo de fazer de um “você” fundamento de absolvição. Para Elísio Lourenço, advogado do arguido, importa apurar se o seu cliente apregoou “Não tenho medo de pretos”, ou “Não tenho medo de vocês, pretos”, para determinar se o assassinato teve motivação racial.

A diferença apontada pelo jurista sugere que, na sua leitura, o racismo é medido pela quantidade. Como se agredir “estes pretos”, e não “todos os pretos”, fosse de algum modo abonatório.

Vigília por Justiça

A evidente e aviltante desvalorização do ódio racial tem sido contestada pela viúva de Ademir, que insiste no agravamento da acusação de homicídio qualificado por esse motivo.

“Irei recorrer a todas as instâncias que sejam possíveis, para que a Justiça seja feita”, sublinha Lurdes Ferreira, na vigília que se seguiu à segunda sessão do julgamento.

Presente também no arranque das audiências, a 5 de Junho, a técnica auxiliar de enfermagem lamenta o desinteresse e ausência da comunicação social, e lembra que Ademir era, para além de “trabalhador, bom pai, bom marido e bom cidadão”, o “grande amor” da sua vida.

Agora a “viver de fotografias e de lembranças”, conforme mencionou nessa intervenção nos Açores, a viúva partilhou, na conversa com o Afrolink, que encontra força para seguir em frente na filha.

“O que é que vai ser dela, quando eu não estiver por cá?”, inquieta-se, explicando que, aos 17 anos, Luana foi diagnosticada com uma encefalite autoimune. O diagnóstico, que “por milagre”, não lhe custou a vida, é acompanhado, desde então, por uma bateria quotidiana de medicamentos.

“Eu tenho uma incapacidade, a minha filha tem a incapacidade dela, e tem sido muito difícil sobreviver sem o apoio do meu marido”, nota Lurdes, explicando que as duas viagens de ambas aos Açores, para acompanhar o julgamento, foram oferecidas por uma pessoa amiga.

Com a próxima sessão marcada para 2 de Julho, a família ainda não sabe se conseguirá estar presente em tribunal. Mas, nos Açores ou à distância, só há um desfecho aceitável para este julgamento: “A pessoa que cometeu o homicídio tem de ser punida”. Sem atenuantes para o seu ódio racista. 

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Judaico-Cristão? A História apagada por trás de uma expressão conveniente

A empresária de impacto social Myriam Taylor reflecte sobre o conceito de “judaico-cristianismo”, neste artigo de opinião que o Afrolink publica. “Após o Holocausto, e com a fundação do Estado de Israel em 1948, as democracias ocidentais – sobretudo os Estados Unidos – começaram a usar a expressão “judaico-cristã” para justificar alianças geopolíticas, especialmente durante a Guerra Fria”, nota a activista pelos Direitos Humanos. “O termo tornou-se uma ferramenta de propaganda”, prossegue Myriam, assinalando que o mesmo associa “valores como liberdade, moralidade e democracia a uma suposta herança comum judaico-cristã — em oposição ao comunismo ateu ou ao “mundo islâmico””. Mais do que identificar o problema, a empresária aponta a solução: “Abrir caminho para uma teologia da justiça que também enfrente a opressão dos palestinianos, o racismo religioso e a exclusão dos outros povos da narrativa de salvação”.

A empresária de impacto social Myriam Taylor reflecte sobre o conceito de “judaico-cristianismo”, neste artigo de opinião que o Afrolink publica. “Após o Holocausto, e com a fundação do Estado de Israel em 1948, as democracias ocidentais – sobretudo os Estados Unidos – começaram a usar a expressão “judaico-cristã” para justificar alianças geopolíticas, especialmente durante a Guerra Fria”, nota a activista pelos Direitos Humanos. “O termo tornou-se uma ferramenta de propaganda”, prossegue Myriam, assinalando que o mesmo associa “valores como liberdade, moralidade e democracia a uma suposta herança comum judaico-cristã — em oposição ao comunismo ateu ou ao “mundo islâmico””. Mais do que identificar o problema, a empresária aponta a solução: “Abrir caminho para uma teologia da justiça que também enfrente a opressão dos palestinianos, o racismo religioso e a exclusão dos outros povos da narrativa de salvação”.

Texto de Myriam Taylor

Nos últimos anos, ouvimos cada vez mais referências à chamada “tradição judaico-cristã” nos púlpitos, nos discursos políticos e até em documentos oficiais de diálogo inter-religioso. Em Portugal, esta linguagem chega tardiamente, sem que se questione suficientemente a sua origem, o seu uso político, e as suas consequências para uma teologia fiel à verdade histórica e à justiça inter-religiosa.

Mas será que a expressão “judaico-cristã” faz parte da tradição litúrgica da Igreja? E que teologia sustenta essa linguagem? A resposta surpreende: nenhuma liturgia tradicional portuguesa, nem os documentos magisteriais anteriores ao século XX, alguma vez definiram a Igreja como “judaico-cristã”.

Pelo contrário, durante séculos, o cristianismo foi construído em oposição ao judaísmo, muitas vezes alimentando o antissemitismo. A reconciliação, quando veio, foi tardia e necessária. O Concílio Vaticano II foi um ponto de viragem, com a declaração Nostra Aetate a rejeitar formalmente a ideia de culpa coletiva do povo judeu na morte de Cristo. Foi nesse contexto de reparação que, no mundo anglo-saxónico, se começou a falar em “herança judaico-cristã” como ponte de diálogo.

Contudo, essa ponte não foi construída apenas com tijolos de reconciliação espiritual. Foi também erguida sobre interesses políticos e estratégicos. Após o Holocausto, e com a fundação do Estado de Israel em 1948, as democracias ocidentais — sobretudo os Estados Unidos — começaram a usar a expressão “judaico-cristã” para justificar alianças geopolíticas, especialmente durante a Guerra Fria. O termo tornou-se uma ferramenta de propaganda, associando valores como liberdade, moralidade e democracia a uma suposta herança comum judaico-cristã — em oposição ao comunismo ateu ou ao “mundo islâmico”.

No campo religioso, a teologia cristã dispensacionalista, popular entre evangélicos norte-americanos, ajudou a alimentar o sionismo político, com interpretações apocalípticas que viam o retorno dos judeus à Palestina como parte do “plano divino”. A instrumentalização do sofrimento do povo judeu, transformando-o em aliado estratégico no tabuleiro global, deu ao termo “judaico-cristão” um uso não inocente.

Em Portugal, esta linguagem chegou importada, mas sem crítica. Começou a aparecer em homilias, documentos catequéticos e até em textos institucionais, como se fosse parte orgânica da nossa história. Mas Portugal foi um dos países mais violentos na repressão do povo judeu: com a expulsão dos judeus sefarditas, a imposição forçada da conversão, e os autos-de-fé da Inquisição. Falar em “tradição judaico-cristã” sem reconhecer essa história de violência é reescrever o passado com tinta ideológica.

Além disso, ao insistirmos na aliança “judaico-cristã”, silenciamos outras heranças igualmente fundadoras da experiência de fé cristã: a matriz africana da Igreja primitiva (Egito, Etiópia), o papel das comunidades árabes-cristãs, a contribuição do pensamento muçulmano para a filosofia cristã medieval, e os elos espirituais com povos indígenas que hoje ainda vivem a fé de forma encarnada.

Precisamos de uma teologia mais honesta, mais plural e mais descolonizada. Não basta repetir fórmulas novas como se fossem antigas. É necessário perguntar: a quem serve essa linguagem? O que encobre? E o que exclui?

A reconciliação entre cristãos e judeus é um imperativo moral e espiritual. Mas ela deve ser feita com verdade, não com slogans. E deve abrir caminho para uma teologia da justiça que também enfrente a opressão dos palestinianos, o racismo religioso e a exclusão dos outros povos da narrativa de salvação.

Falar de “judaico-cristianismo” sem senso crítico é repetir a liturgia do poder. E a liturgia do poder não liberta. Apenas disfarça.

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Quem incendiou um autocarro, com o motorista dentro? Ouvimos a “verdadeira história”

Retratados em noticiários televisivos e páginas de jornais como “os atacantes” do motorista da Carris que sofreu queimaduras graves durante os protestos contra o assassinato de Odair Moniz, Pedro Quadros e Wilson Mendes tornaram-se “presas fáceis” de uma investigação que se assemelha a uma perseguição. Detidos preventivamente a 28 de Novembro de 2024, apresentaram, dias depois, a 9 de Dezembro, provas e testemunhas que os retiram do local do crime, para onde as autoridades decidiram que tinham de ser arrastados. “Quiseram mostrar trabalho, e acabaram por prender dois inocentes que culparam à toa”, aponta Pedro, enquanto Wilson ilustra bem as fragilidades do processo: “Chegaram [à minha casa] a perguntar mais pelo meu irmão, porque disseram que eu, ele, e mais uns oito indivíduos teríamos feito aquilo. Mas o meu irmão vive fora de Portugal há 2 anos”. Os dois amigos, com quem o Afrolink falou em momentos distintos, por estarem impedidos de comunicar entre si, foram libertados em Março e em Maio, mas continuam a ter a sua imagem presa ao ataque que quase matou o motorista Tiago Cacais. Exigem, por isso, que se faça justiça, provando a sua inocência, e movendo uma acção contra o Estado. “O mundo sabe o que o motorista contou. Neste caso, acho que foi o que lhe disseram para contar, para tentar arranjar o culpado”, assinala Wilson, demonstrando uma empatia que nunca lhe foi dirigida. “Eu entendo a parte dele. Mas se realmente quer arranjar justiça, não é culpando qualquer um. Não é assim que é feita justiça”.

Retratados em noticiários televisivos e páginas de jornais como “os atacantes” do motorista da Carris que sofreu queimaduras graves durante os protestos contra o assassinato de Odair Moniz, Pedro Quadros e Wilson Mendes tornaram-se “presas fáceis” de uma investigação que se assemelha a uma perseguição. Detidos preventivamente a 28 de Novembro de 2024, apresentaram, dias depois, a 9 de Dezembro, provas e testemunhas que os retiram do local do crime, para onde as autoridades decidiram que tinham de ser arrastados. “Quiseram mostrar trabalho, e acabaram por prender dois inocentes que culparam à toa”, aponta Pedro, enquanto Wilson ilustra bem as fragilidades do processo: “Chegaram [à minha casa] a perguntar mais pelo meu irmão, porque disseram que eu, ele, e mais uns oito indivíduos teríamos feito aquilo. Mas o meu irmão vive fora de Portugal há 2 anos”. Os dois amigos, com quem o Afrolink falou em momentos distintos, por estarem impedidos de comunicar entre si, foram libertados em Março e em Maio, mas continuam a ter a sua imagem presa ao ataque que, a avaliar pelas notícias, quase matou o motorista Tiago Cacais. Exigem, por isso, que se faça justiça, provando a sua inocência, e movendo uma acção contra o Estado. “O mundo sabe o que o motorista contou. Neste caso, acho que foi o que lhe disseram para contar, para tentar arranjar o culpado”, assinala Wilson, demonstrando uma empatia que nunca lhe foi dirigida. “Eu entendo a parte dele. Mas se realmente quer arranjar justiça, não é culpando qualquer um. Não é assim que é feita justiça”.

Pedro Quadros (à esquerda), e Wilson Mendes, em entrevista ao Afrolink

“Atacaram”, “atearam fogo” e “quase mataram”. Em diferentes notícias, na televisão e em jornais, Pedro Quadros e Wilson Mendes surgem como “criminosos” que, sem direito a presunção de inocência, são apontados como os responsáveis do acontecimento mais grave que marcou os protestos contra o assassinato de Odair Moniz, às mãos da Polícia.

O caso em que estão implicados deu-se na madrugada de 24 de Outubro de 2024, quando o motorista da Carris, Tiago Cacais, foi atacado em Santo António dos Cavaleiros, dentro do autocarro que conduzia.

A agressão agravou o tom da contestação que, desde o homicídio de Odair, um par de dias antes, percorria vários bairros da Área Metropolitana de Lisboa, com epicentro no Zambujal, onde a vítima residia, e na Cova da Moura, onde foi mortalmente baleada por um agente da PSP.

A revolta das periferias, impulsionada a partir de uma narrativa policial de criminalização de Dá, como era carinhosamente tratado, estendeu-se por dias, e precipitou uma espécie de nova ‘época de caça’ em bairros de habitação municipal .

“Quiseram mostrar trabalho, e acabaram por prender dois inocentes que culparam à toa”, aponta Pedro Quadros que, juntamente com Wilson Mendes foi preso, sob suspeitas de co-autoria material de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, e outros de incêndio, dano qualificado e omissão de auxílio.

A prisão preventiva, decretada cerca de um mês após o ataque ao motorista – mais concretamente a 28 de Novembro de 2024 – foi, desde o primeiro minuto, contestada por Pedro e Wilson, que, a 9 de Dezembro, através do seu advogado, apresentaram provas e testemunhas que os retiram do local do crime, para onde as autoridades decidiram que tinham de ser arrastados.

Até quem vive fora de Portugal, estava a ser implicado

As fragilidades do processo, de tão gritantes, levaram o Ministério Público a pedir a libertação dos dois amigos, com quem o Afrolink falou em momentos distintos, por estarem impedidos de comunicar entre si.

A conversa ajuda a perceber como as diligências de investigação se assemelham a uma campanha de perseguição, onde o cadastro de ambos os transformou em presas fáceis.

 “Chegaram [à minha casa] a perguntar mais pelo meu irmão, porque disseram que eu, ele, e mais uns oito indivíduos teríamos feito aquilo [atacado o autocarro e queimado o motorista]. Mas o meu irmão vive fora de Portugal há 2 anos”.

O relato de Wilson recua os acontecimentos à manhã de final de Novembro, em que, irrompendo pela sua casa adentro, um grupo de agentes parece ter agido sob um único comando: “É preciso deter sem olhar a quem”.

Já nos calabouços da Polícia Judiciária, de onde saiu para o Estabelecimento Prisional de Lisboa, até ser libertado no passado dia 26 de Maio, o jovem artista de 22 anos garante que ficou evidente, no interrogatório, que o seu caso estava a ser instrumentalizado.

 “[Os inspectores] acreditaram sempre em mim. Até me disseram que sabiam que não teria sido eu, só que, para me poderem ajudar, eu deveria dizer quem foi. Respondi: não sei, mas eu não fui”, conta Wilson.

Como saber mais se, na altura dos acontecimentos, estava forçado a permanecer em casa, em repouso, por ter o braço ao peito?

Condenados no espaço público, mesmo com provas em contrário

A imobilização temporária, confirmada por registos médicos, foi também corroborada por testemunhos de familiares, com quem o jovem vive, mas as diligências para analisar elementos ilibatórios terá sido repetidamente adiada.

A prioridade, tudo indica, era serenar os ânimos com detenções, que pudessem vingar o motorista, e demonstrar que haveria punição para quem destruiu património público e privado durante os protestos.

De outra forma, como entender que só quatro meses após ter sido decretada a sua prisão preventiva, Pedro, então a trabalhar como electricista, tenha conseguido que os seus registos telefónicos comprovassem o que alegou desde o início: que à hora do ataque ao motorista, estava a quilómetros do local do crime?

Mais do que nunca, importa repetir e insistir nos questionamentos, porque mesmo em liberdade, a sua condenação persiste, conforme revela uma das últimas notícias sobre o caso, embrulhada neste título: “Quase matam e são libertados”.

Inconformados com os julgamentos em praça pública, agravados pela divulgação das suas imagens, Pedro e Wilson prometem agir judicialmente contra os seus detractores.

“Estavam à procura de culpados, porque a população já estava a exigir respostas, e sentiram-se um pouco pressionados. Então, o trabalho que fizeram não foi bem pensado, não foi honesto, foi tudo muito à pressa”, reforça Pedro, de 24 anos, enquanto Wilson partilha um profundo e pesado sentimento de injustiça. “Sei que se o meu irmão estivesse em Portugal também iria dentro”.

As marcas desumanas da violência prisional

A dedução segue a lógica da contaminação por proximidade que parece guiar a investigação.  “Todos os que estamos ali no processo, já nos conhecemos há bastante tempo. Estudámos juntos desde a primária”, observa Pedro, que, à semelhança de Wilson, também sentiu o peso do julgamento de grupo no Estabelecimento Prisional de Lisboa.

“Se acontecesse alguma coisa, iriam dizer que fomos nós os dois”, nota Wilson, que amargou quase duas semanas na solitária, experiência comum ao amigo, tal como ele repetidamente tratado pelos guardas como incendiário.

Além de provocações e insultos verbais, ambos relatam situações de violência física, sobre as quais preparam também acções judiciais.

“No primeiro dia em que cheguei, disseram: se um guarda não aguentar contigo, vêm dois; se dois não aguentarem, vêm três; se três não aguentarem, vêm oito. E se oito não aguentarem, podes crer que vêm muito mais”.

Das palavras, acima descritas por Wilson, aos actos, a passagem pela cadeia ficou gravada por manobras diárias de intimidação, onde se multiplicam violências.

“Lá em baixo no castigo [solitária], não tem câmaras, não têm nada. Foi aí que já estavam quatro guardas à minha espera para me agredir. Puxaram-me [até arrancar] duas rastas, que ainda tenho em casa”.

As marcas da prisão vão, contudo, muito além dos ataques.

“Estar ali não é para nenhum ser humano. Vemos ratos a sair da sanita, baratas na comida… os guardas normalmente nem querem saber de nós”, aponta Wilson, relatando um destino de desumanização.

“Eu digo mesmo, numa música que escrevi, que os direitos de um ser humano acabam ali dentro. Mas pior ainda para nós, que fomos lá parar por uma coisa que não fizemos”.

Noutra composição, Wilson, que artisticamente faz do nome Willy assinatura, reflecte sobre o fardo familiar de uma perseguição judicial.

“Os meus pais sabiam que eu estava preso por uma coisa que não fiz. Eles tinham a certeza de que eu estava em casa porque eles estavam lá comigo. Isso deixou-me mais descansado”.

Ao mesmo tempo, sublinha Pedro, a certeza da inocência torna o processo especialmente danoso.

“É um bocado difícil andar na rua, e as pessoas ficarem mesmo aqui, no local onde eu moro, a olhar-me como se fosse um bandido, como se fosse um incendiário”. 

A verdadeira história que as provas corroboram, mas ainda não se reflecte em Justiça

Empenhado, tal como Wilson, a libertar-se de toda e qualquer suspeita relacionada com a madrugada de 24 de Outubro, Pedro revela que, da mesma forma que se apressou a disponibilizar os registos telefónicos, também sugeriu que se analisassem imagens de videovigilância.

“O autocarro tem câmaras, mas disseram que não dava para ver as imagens por causa do fumo”, nota o jovem electricista, lembrando que as suspeitas que recaíram sobre si tiveram como fonte exclusiva o testemunho do condutor da Carris.

“O motorista disse que me reconhecia, que me reconheceu, e que já me conhecia há algum tempo, porque eu entrava no autocarro sem pagar bilhete. Mas não é verdade, porque eu não o conheço de lado nenhum, e, se for preciso, a última vez em que andei de autocarro ainda era menor de idade”.

Aliás, se, de facto, existissem imagens incriminatórias, alguém acredita que o Ministério Público fosse pedir a libertação?

 “Acho que não há dúvidas quanto a isso”, defende Wilson, ainda hoje às voltas com a mesma pergunta: “Porquê comigo?”.

As memórias da prisão, ainda demasiado presentes, incluem a dor de, pela primeira vez ter visto o pai chorar. “Foi na visita. Quando ele chegou, meteu a mão na cabeça e disse que não estava a acreditar”.

A incredulidade arrastou-se por seis penosos meses de prisão, que Wilson quer deixar completamente para trás.

“Porque eu sei que não estive lá, o Pedro também não esteve lá, então só pode ter sido alguém a dizer [ao motorista]: olha, aponta para este, é mais fácil para podermos resolver o caso.”

Aqui chegados, como reverter os danos de uma acusação tão cruel?

“A justiça que me podem fazer agora é: da mesma forma que se puseram a dizer que eu estava culpado, é porem-se a dizer que estou inocente”, aponta Pedro, sem compreender como é que ainda não está completamente ilibado.

A par da localização do telemóvel, que o afasta do local do crime, o jovem de 24 anos refere que as comunicações efectuadas na madrugada em que está implicado, comprovam que soube do incêndio ao autocarro através da mãe e de um amigo.

Do mesmo modo, Wilson refere que, à hora dos acontecimentos, estava a trocar mensagens, facilmente rastreáveis.

“Se descobriram os verdadeiros culpados ou não, isso, no fundo, não me interessa. Eu quero é provar a minha inocência”, diz, reforçando que esse resultado exige que se conheça “a verdadeira história”. Por isso, decidiu falar com o Afrolink.

“O mundo sabe o que o motorista contou. Neste caso, acho que foi o que lhe disseram para contar, para tentar arranjar o culpado”, reitera Wilson, demonstrando uma empatia que nunca lhe foi dirigida. “Eu entendo a parte dele. Mas se realmente quer arranjar justiça, não é culpando qualquer um. Não é assim que é feita justiça”.

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No “Refúgio” de Luiana Abrantes, música e moda tecem Humanidade

Lançou o primeiro álbum no final do ano passado, e dá-lhe agora nova vida com três músicas gravadas ao vivo. Entre o “Refúgio” de 2024, e o “Refúgio Relaunch” de 2025, Luiana Abrantes ganhou uma distinção no Brasil, e uma bolsa de criação artística em Portugal, sem perder o fio à meada da “Truly Afro”, a marca de roupa que veste a celebração da sua africanidade angolana. Já a trabalhar no novo disco, conversou com o Afrolink sobre a inspiração para compor, o trabalho, a maternidade, a condição feminina, e o défice de humanidade que nos tem vindo a desequilibrar. “O nosso olhar em relação ao outro tem de ser treinado. As pessoas não têm só um lado mau, também têm alguma coisa boa para dar”.

Lançou o primeiro álbum no final do ano passado, e dá-lhe agora nova vida com três músicas gravadas ao vivo. Entre o “Refúgio” de 2024, e o “Refúgio Relaunch” de 2025, Luiana Abrantes ganhou uma distinção no Brasil, e uma bolsa de criação artística em Portugal, sem perder o fio à meada da “Truly Afro”, a marca de roupa que veste a celebração da sua africanidade angolana. Já a trabalhar no novo disco, conversou com o Afrolink sobre a inspiração para compor, o trabalho, a maternidade, a condição feminina, e o défice de humanidade que nos tem vindo a desequilibrar. “O nosso olhar em relação ao outro tem de ser treinado. As pessoas não têm só um lado mau, também têm alguma coisa boa para dar”.

Luiana Abrantes, vestida com a sua marca, “Truly Afro”

Canta o que escreve, veste o que costura, e, de criação em fruição, Luiana Abrantes deixa-se ser. “Quando não estou a fazer música, estou a fazer peças de roupa. Quando não estou a fazer peças de roupa, estou a fazer música. E acabo por manifestar a minha essência nas duas áreas”.

Criadora da marca de moda “Truly Afro”, e autora do álbum “Refúgio” – lançado em Setembro do ano passado, e relançado agora como “Refúgio Relaunch” –, a cantautora escolhe viver segundo o próprio ritmo, desligada de reguladores externos.

“O nosso tempo aqui passa muito rápido, e eu quero aproveitar da minha maneira, não como o sistema impõe. O «Refúgio» é sobre isso. É uma chamada de atenção para o nosso interior, para o reforçarmos, e não cairmos na armadilha de que temos de estar dentro dos parâmetros em que todos os outros estão”.

Tarimbada nesse fortalecimento interno, a artista, nascida em Luanda há 38 anos, verte-o para as suas composições, que começou por apresentar, single a single, com os temas “Mudança”, “Enamorada” e “Serenidade”.

“Estou sempre a compor, porque penso muito na vida, no que aquilo que vejo me faz sentir, e isso sai muitas vezes em forma de música”.

O processo criativo começou por ganhar expressão discográfica em estúdio, e vai ter agora, na edição “Relaunch”, três temas gravados ao vivo. O primeiro – “Enamorada” – já está disponível nas plataformas digitais, e, anuncia Luiana ao Afrolink, outros dois estão a caminho: “Giramundo” e “Mudança”, este último em versão acústica, só com guitarra e voz.

“Vamos continuar a revisitar o «Refúgio» através do «Relaunch»”, revela a cantautora, que no sábado passado, 31 de Maio, subiu ao palco do This is Sessions, em Lisboa, para um sarau musical.

Novo álbum em construção, com voo para o Brasil no horizonte

A experiência deverá repetir-se durante os próximos meses, antecipa Luiana, que prepara já o segundo álbum, ao abrigo de uma bolsa de criação artística da DG Artes.

A novidade tem lançamento previsto para 2026, e promete impulsionar uma trajectória musical ainda embrionária, mas já distinguida além-fronteiras, num concurso do III Festival Universitário de Música do Gimu – Grupo de Integração Musical da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.

O reconhecimento, por músicos e pesquisadores do campo da etnomusicologia – que se têm debruçado sobre musicalidades africanas e afro-diaspóricas –, destacou a canção “Serenidade” como uma das cinco melhores entre 39 avaliadas.

“Soube do concurso, que está associado a uma universidade, através de um amigo brasileiro, filho de pais angolanos. Candidatei-me, e quando já nem me lembrava disso, fui surpreendida com a notícia de que ganhei”.

O resultado, anunciado no final do ano passado, abre caminho a novos voos.  “Como esta já é a terceira edição, eles estão a preparar-se para organizar um festival na Bahia, e chamar todos os vencedores. Só não sei se será neste ou no próximo ano”.

Seja como for, a iniciativa assume o compromisso de “valorizar a música autoral e original”, e “estreitar as interlocuções entre Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, a partir da cena musical produzida nesses países”.

A proposta, assinala Luiana, encaixa perfeitamente na sua assinatura sonora. “O «Refúgio» tem a participação de artistas de vários países – angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos… –, porque a minha música, no fundo, acaba por ser uma fusão da lusofonia toda”.

Combater a resignação

Apesar de não gostar de criar expectativas – “prefiro viver um dia de cada vez” –, a também designer não abdica da sua medida de sucesso: “É estar em paz, e bem comigo própria”.

O caminho, entre a música e a moda, desbrava-se em contracorrente, tanto a nível pessoal como profissional.

“Tive outros trabalhos antes de ter a minha marca, e percebi que tinha de fazer a minha vida de outra forma, porque não me identifico com o modo como o mercado funciona”.

Além dos constrangimentos de horário, robotizados num modelo “das 9 às 5”, Luiana contesta a normalização das relações desumanas.

“Falo naquela coisa de ter um patrão que fala mal contigo, que te trata mal. Acho que as pessoas começam a acreditar que faz parte. Mas não. Não é bonito, nem é saudável”, sublinha a artista, alertando para os efeitos da resignação.

“As pessoas estão a ficar doentes por causa da forma como o trabalho é exercido. Até parece que se não vives em stress e ansiedade, não estás a trabalhar. Eu, por exemplo, só porque digo que adoro estar no meu ateliê, muitas vezes pensam que tenho um hobby”.

Longe disso, a cantautora e designer lembra que o destino freelancer tem o seu preço.

“Abdiquei de um trabalho com um salário garantido. Foi uma escolha, porque prefiro estar em paz, e ganhar menos nesta fase”, aponta, sem romantizações. “Tive de criar as condições para isso, porque a vida de empreendedor não é fácil”.

Acolher o ciclo humano, em contracorrente

Também em contraciclo, Luiana avançou para a maternidade quando, à sua volta, o mundo seguia noutras direcções.

“Ouvi muitas críticas. Havia mesmo quem dissesse: ‘Não podes ser mãe, ainda não acabaste o curso’”.

Hoje com dois filhos adolescentes, a cantautora conta que vive esta etapa da vida de uma maneira muito leve.

“Se calhar é da forma como nós pensamos em África: onde come um ou dois, comem três. Eu considero que o planeamento é importantíssimo, mas o planeamento excessivo, que vejo muitas vezes aqui na Europa, faz com que tu não dês determinados passos”.

Pior do que isso, estaremos a contrariar os nossos ciclos humanos?

“Vejo amigas minhas que querem ser mães, e não são porque acham que precisam de criar as condições ideais para isso”, nota a cantautora, distanciando-se de programações de pressão externa.

“Tento sempre passar uma mensagem positiva com a música, para tentar suavizar um pouco o que vejo neste mundo, que agora gira muito à volta da sexualidade da mulher”, explica Luiana, propondo outra abordagem. “Eu não digo que isso seja mau, mas acho que está a ser exacerbado, exposto de uma maneira que para mim não tem a ver com a beleza e sensualidade feminina”.

Apologista de uma alternativa, “mais serena e de paz”, a designer explica que a ruptura com as “normas” também se observa com a marca “Truly Afro”.

“A minha intenção foi tentar normalizar, entre aspas, a questão afro. Não ter vergonha de assumir as nossas origens, e usar com orgulho os tecidos africanos, porque são a nossa identidade”.

Despir as lentes da discriminação

Para além de criações artísticas, Luiana partilha, a cada proposta, a sua expressão humana. “O nosso olhar em relação ao outro tem de ser treinado. As pessoas não têm só um lado mau, também têm alguma coisa boa para dar”.

Embora se tenha confrontado, desde cedo, com situações desumanas do pós-guerra em Angola – incluindo crianças a comerem no lixo, e soldados com os membros amputados a pedir [esmola] nos sinais de trânsito –, a cantautora garante que nunca normalizou a dor ou a violência. Pelo contrário.

“Isso talvez tenha feito com que me tornasse muito sensível ao sofrimento alheio”, reconhece a designer, apelando ao não julgamento.

“Acho que todos temos a centelha divina, de Deus. Por isso, acredito que alguma coisa acabe por espoletar a maldade no decorrer da vida, dependendo do contexto em que somos educados. Então, nós temos que entender as circunstâncias e não julgar facilmente e, às vezes, de forma tão irracional”.  

Mais do que isso, Luiana sugere que usemos mais “a nossa parte humana, o nosso olhar mais sensível e mais humano em relação aos outros”, despindo-o das lentes de discriminação.

“Uma vez li uma frase muito curta, acho que no Pinterest, de que «onde há excesso, há falta de…». Por isso, quando temos excesso de preconceito, temos falta de alguma coisa”.

Do quê, em concreto?

A resposta, defende a criativa, pede refúgio. “Aquilo que nós chamamos de mal, na verdade, para mim, é ignorância em relação ao bem. Isto prende-se muito com aquilo em que acredito: que estamos todos aqui para evoluir, mas cada um de nós está num estágio de evolução diferente. E só através da experiência conseguimos aprender esse bem”.

Ao mesmo tempo, a autora de “Refúgio” alerta para a necessidade de recuperarmos do desencontro de género em que muitas vezes nos arrastamos.

“Nós, mulheres, estamos a ser obrigadas, por causa da questão capitalista, a nos posicionarmos na sociedade como homens, para podermos competir com eles. Então, acabamos por vestir as suas características, e perder algumas das nossas.”

O regresso ou a descoberta da nossa natureza impõe-se, assim, como um resgaste da nossa força e propulsor de uma nova consciência.

“Vivemos numa sociedade muito individualista. Pensamos muito em nós próprios sempre, e esquecemos que fazemos parte de um todo”, lamenta a cantautora, sublinhando que é “apenas mais uma pessoa, no meio de tantas, e todas as pecinhas são importantes”.

Falta ligá-las e, com isso, formar colectivo, processo que pode ser sonoramente impulsionado.

“A música é uma coisa poderosa. Tem uma força e uma energia capaz de activar emoções e estados de alma”. E oferecer “Refúgio”, a partir das plataformas digitais:

Apple

Spotity

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“Reparations Baby!” – o concurso-revolução para descolonizar a nossa TV

“Reparations Baby!” é a mais recente criação de Marco Mendonça, que, com um texto tão mordaz quanto perspicaz, coloca o tema das reparações históricas na agenda…quanto mais não seja cultural. Produzido pelo Teatro Nacional D. Maria II, o espectáculo estreia-se no próximo dia 5 de Junho no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra, antes de seguir para as cidades de Barcelos e de Ílhavo, nos dias 14 e 21 do mesmo mês, respectivamente. A apresentação em Lisboa está marcada para o Teatro Variedades, onde a peça sobe ao palco de 9 a 27 de Julho. Na recta final dos ensaios, o Afrolink conversou com o actor, criador e encenador, que, depois de nos ter apresentado a peça “Blackface”, regressa aos arquivos históricos para nos desafiar a reflectir sobre legados de abusos e desigualdades raciais, e a importância do reconhecimento, e da responsabilização. “Acho que pode ser produtivo saber que a culpa existe, que está de certa forma no ADN da construção do país, e do império”.

“Reparations Baby!” é a mais recente criação de Marco Mendonça que, com um texto tão mordaz quanto perspicaz, coloca o tema das reparações históricas na agenda…quanto mais não seja cultural. Produzido pelo Teatro Nacional D. Maria II, o espectáculo estreia-se no próximo dia 7 de Junho no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra, antes de seguir para as cidades de Barcelos e de Ílhavo, nos dias 14 e 21 do mesmo mês, respectivamente. A apresentação em Lisboa está marcada para o Teatro Variedades, onde a peça sobe ao palco de 9 a 27 de Julho. Na recta final dos ensaios, o Afrolink conversou com o actor, criador e encenador que, depois de nos ter apresentado a peça “Blackface”, regressa aos arquivos históricos para nos desafiar a reflectir sobre legados de abusos e desigualdades raciais, e a importância do reconhecimento e responsabilização. “Pode ser produtivo saber que a culpa existe, que está de certa forma no ADN da construção do país, e do império”.

“Reparations Baby!”, com foto de Pedro Macedo e composição gráfica de Vinicius Batista
Foto de capa de Filipe Ferreira

Náufrago de uma narrativa histórica afundada nos “heróis do mar”, Portugal permanece à deriva, incapaz de sair das profundezas de um passado romantizado, e de trazer à tona a realidade.

“Há uma insistência em falar-se das partes boas, sendo que é preciso procurarmos muito para as encontrar”, aponta Marco Mendonça, que, a partir do teatro, nos encaminha para outra direcção.  

“Falta ao país responsabilização, a tomada de consciência de que o que aconteceu foi terrível, horrendo para todos os países ocupados,”, sublinha o autor de “Reparations Baby!”, peça que se vai estrear no próximo dia 7 de Junho no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra.

Entre ensaios, que foram ajudando a firmar caminhos – “começámos com a versão 6 do texto, agora já vamos na 8.3 – o actor, criador e encenador assume a intenção de constranger.

“Há provocações que eu sinto mesmo que precisam de estar em palco, e espero que elas cheguem nos momentos certeiros”.

O processo cumpre-se com “a ideia de um game show extravagante, com luzes, música, e muita informação”, antecipa Marco que, depois de nos ter apresentado a peça “Blackface”, regressa aos arquivos históricos para nos desafiar a reflectir sobre legados de abusos e desigualdades raciais, e a importância do reconhecimento.

“Pode ser produtivo saber que a culpa existe, e que ela pertence a alguém. Acredito que, mais do que nunca, as pessoas precisam de viver essa culpa, de a sentir, ou de empatizar com quem reclama reparações históricas”.

A abordagem, explica o moçambicano e português, “parte sempre de um lugar muito pessoal”, indissociável das suas próprias vivências, marcadas por um contínuo de heranças coloniais.

“Há coisas que eu me proponho a aprender, para poder falar delas com o mínimo de propriedade”, assinala, enquanto ganha músculo na arte de deslindar factos que o país continua a ocultar.

“O processo de pesquisa para o espetáculo trouxe-me muito mais frustração do que esperança”, admite, alertando para a urgência de uma discussão séria e consequente sobre reparações.

“Começaria por uma coisa muito simples que é assumir, de forma transparente e responsável, tudo o que de mal aconteceu”.

Ou, nas palavras do Presidente da República, evocadas em “Reparations Baby!”, Portugal deve reconhecer aquilo que “de bom e de mau” fez no passado.

“Esse reconhecimento é essencial. A culpa existe, e está, de certa forma, no ADN da construção do país, e do império”, reforça o autor, insistindo na importância da informação.

Por exemplo, qual o peso do trauma ancestral na vida das pessoas negras? “A título muito pessoal, sou uma pessoa que sofre de ansiedade. Fui diagnosticado há cinco anos e, nessa altura, fiquei a pensar muito sobre o nível de hereditariedade dessa condição”, conta Marco, hoje munido de pesquisas que evidenciam a carga transgeracional do que vivemos.

“Fui ler para tentar perceber um bocadinho melhor as minhas ansiedades, e vejo muito fundamento nessa ideia de transmissão”.

A consciência encontra tradução em “Reparations Baby!”, onde o trauma ancestral atinge proporções demolidoras.

“Não são apenas os estudos. Percebi também, ao falar com o elenco, que esse é um peso comum entre nós, pessoas negras, e muito mais transversal do que pensamos”.

Reconhecê-lo permite enfrentá-lo, observa Marco: “A minha ansiedade surgiu como um problema, e agora é simplesmente uma coisa com a qual eu vivo, e está tudo bem”.

O exemplo encaixa na perfeição num dos inúmeros e valiosos ensinamentos que encontramos em James Baldwin: “Nem tudo o que enfrentamos pode ser mudado. Mas nada pode ser mudado enquanto não for enfrentado”.

A citação-lição do escritor americano solta-se no palco de “Reparations Baby!”, onde um concurso televisivo exclusivamente reservado a participantes negros nos confronta com uma sucessão de factos e constrangimentos históricos.

“São coisas que todos os dias me fazem pensar, e dão-me mais vontade de constatar o óbvio da forma menos óbvia possível”.

Entre os “heróis do mar”, e os “heróis do mas”

A proposta combina “segmentos de teoria anti-racista” com “cultura pop luso-africana e trivia colonial”, anuncia-se na sinopse do espectáculo, que apresenta Reparations Baby!, como “um programa que pretende revolucionar o prime time português”.

Mas, estarão as pessoas brancas preparadas para ver pessoas negras num lugar de protagonismo televisivo, e a facturas milhares de euros? E até que ponto se disponibilizam para olhar criticamente para o passado?

“Como espectador, gosto de sair de uma sala de teatro a pensar, a considerar uma perspectiva que nunca tinha ponderado antes. Por isso, se “Reparations Baby!” ajudar o público nesse processo, tanto melhor”.

Além de abrir amplo espaço para debate e reflexão, o espectáculo ilustra bem como a fragilidade branca continua a frustrar possibilidade de avanço.

“Para mim é evidente que existe o medo de uma espécie de vingança, a ideia absurda de que quando um número considerável de pessoas negras estiver em esferas de poder e de decisão, isto vai ser uma razia completa de pessoas brancas”.

Consciente ou inconscientemente, Marco nota que esse receio de perda – mesmo que não se saiba bem o que se está em vias de perder” – continua a travar não apenas o acesso de pessoas negras a oportunidades, mas até a simples possibilidade de diálogo.

“As pessoas negras não estão aqui para tomar o lugar de ninguém. Estão aqui simplesmente para poder concorrer aos lugares, e ter acesso às entrevistas, aos castings, aos editais, ao que quer que seja”, nota, reiterando o pensamento: “É tão fácil perceber que as pessoas brancas não perderiam absolutamente nada, e que as coisas não iriam mudar assim tanto para quem está no poder”.

Falta querer.

Do mesmo modo, Portugal deve procurar entender porque é que se recusa a assumir o “bom” e o “mau” do passado colonizador, justificando sempre as atrocidades do império com os usos e costumes dos “homens desse tempo”. Hoje reféns dos desditos “heróis do mar”, que, entre cenas de “Reparations Baby!”, são certeiramente rebaptizados de “heróis do mas”. Afogados em séculos de mentiras.

Bilheteira:

https://reparationsbaby.carrd.co/

Marco Mendonça, autor de “Reparations Baby!”, aqui em palco com “Blackface”, fotografado por Diana Tinoco

Ficha Técnica

Texto e Direcção Marco Mendonça
Interpretação Ana Tang, Bernardo de Lacerda, Danilo da Matta, June João, Márcia Mendonça, Stela, Vera Cruz
Cenografia Pedro Azevedo
Figurinos Aldina Jesus, Pedro Azevedo
Desenho de luz Teresa Antunes
Desenho de som, Sonoplastia e Música original Mestre André
Vídeo Heverton Harieno
Design Gráfico Vinicius Batista
Apoio à criação Bruno Huca
Participação especial Cláudio Castro, David Esteves, José Neves e Pedro Gil
Produção Teatro Nacional D. Maria II

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Depois do “bom colonizador”, Portugal apresenta o “bom racista”

Especialista em negar evidências históricas, Portugal reinventa-se na arte de ver tudo o que houver para ver, desde que não tenha de enxergar o racismo que habita em si. Por isso, depois do aclamado mito do “bom colonizador”, o país oferece-nos a fantasia do “bom racista” – alguém que fala, age e vota como um racista, mas afinal apenas precisa de atenção e de compreensão. As eleições do último domingo, revelaram mais de 1 milhão e 300 mil predadores dessa espécie. E não há nada de bom nisso!

Especialista em negar evidências históricas, Portugal reinventa-se na arte de ver tudo o que houver para ver, desde que não tenha de enxergar o racismo que habita em si. Por isso, depois do aclamado mito do “bom colonizador”, o país oferece-nos a fantasia do “bom racista” – alguém que fala, age e vota como um racista, mas afinal apenas precisa de atenção e de compreensão. As eleições do último domingo revelaram mais de 1 milhão e 300 mil predadores dessa espécie. E não há nada de bom nisso!

Andei em campanha política nas últimas semanas, tal como em todos os outros dias, por aquilo que defendo sempre: Humanização, Dignificação e Valorização de toda a Humanidade. Não preciso de militância partidária para o fazer, e muito menos de calendários eleitorais, porque a consciência das desigualdades e injustiças sociais é apelo que baste para me mobilizar.

Tenho amor, saúde, tecto, trabalho, comida, alegria e literacias várias para me ir governando apesar de tantos desgovernos. Quantas pessoas podem afirmar o mesmo?

Defendo que todas, todas, todas – mesmo todas – deveriam poder fazê-lo. Por isso, enquanto houver uma que não o possa, estarei em campanha.

Não do tipo da que tivemos nas últimas semanas: marcada pela corrida às eleições do último domingo, tão recheada de bens privados quanto esvaziada de bem-comum.

A minha campanha de todos os dias constrói-se com presença nas escolas, passa pela criação de plataformas de diálogo, assume a denúncia e combate de práticas discriminatórias como um dever, promove espaços de inovação democrática, reconhece o direito de todas as pessoas a serem exactamente o que são, vive da força colectiva.

Pelo contrário, a campanha dos partidos – infelizmente, da esquerda à direita – tem-se alimentado de ausências, para reforçar influências.

Não é disso que precisamos. O que faz falta é uma política com mais pessoas e menos personas, com mais cidadãos e menos patrões, com mais fazedores de soluções e menos fazedores de opiniões. Precisamos dos que vivem no país de todos os dias – e todos os dias – e não dos que habitam numa redoma de país que, em períodos eleitorais, fingem abrir a mais do que isso.

De outro modo, como esperar outros resultados eleitorais? Como fazê-lo, se há muito impera entre nós a política do vale-tudo-desde-que-eu-possa-valer-um-pouco-mais-do-que-o-outro?

Portugal tem séculos de especialização nisso! Do velho tráfico transatlântico de seres humanos à recente perseguição de imigrantes, passando pelo colonialismo, a inferiorização do “outro” tem raízes tão profundas neste país que a relação entre o racismo, a xenofobia e o crescimento da extrema-direita continua a ser desvalorizada de tão naturalizada que está.

Ainda que se aponte o dedo aos descontentes, aos esquecidos, aos desencantados, aos desesperados, aos ignorantes, aos iludidos…aos tudo-tudo-tudo, “não convém chamar-lhes racistas”, recomendam os portugueses mais portugueses que todos.

Que é como quem diz, aqueles que sabem sempre mais do que “os outros”, e que já decidiram que não é benéfico analisar os níveis nacionais de racismo.

O que importa mesmo – explicam-me – é compreender quem expressa a sua adesão a um partido abertamente racista, posicionamento que evidencia o grande problema-que-estamos-com-ele.

Um país que está mais preocupado em acolher os agressores do que em proteger as suas vítimas está submerso em desumanização. Tão simples e tão complexo quanto isso!

E, por mais que eu saiba que analisar os resultados eleitorais faz parte do pacote Legislativas, questiono se podemos fazê-lo com as vivências de todos-todos-todos? Conseguimos reconhecer que os eleitores do Chega podem até estar a ser coagidos pelo medo e minados pelo desencanto, mas isso não os iliba de serem racistas?

Insistir em não ver o racismo presente na votação de 18 de Maio, ou aligeirar o seu impacto, é consentir na sua normalização.

Pior do que isso, revela que a luta política se mantém rasteira, incapaz de se elevar. Porque humanizar quem vota na desumanização ignorando quem está a ser desumanizado evidencia uma única preocupação: recuperar os votos perdidos.

Eu exijo mais do que isso, eu mobilizo-me por mais do que isso, porque enquanto uns lutam apenas por sobressair nas urnas, outros, como eu, lutam para não acabar numa urna. Não é mito. É facto.

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Sem nós não há justiça: Cláudia Simões continua condenada

Cerca de 1 milhão e 200 mil pessoas votaram num partido abertamente racista e xenófobo nas últimas Legislativas, transformando-o na terceira força política em Portugal. Os alarmes deveriam ter soado bem alto, mas, em vez disso, várias vozes se apressaram a absolver o eleitorado racista, justificando as suas escolhas com “zangas”, “ressentimentos” e “descontentamentos”.  Como se houvesse contexto capaz de tornar aceitável e até justificável o racismo e a xenofobia. Ou como se as pessoas escolhessem propostas racistas inocentemente e sem intenção. Afinal, garante o primeiro-ministro, em Portugal "o ódio e as questões raciais não têm uma natureza de preocupação”. Facto é que a aparente facilidade com que a extrema-direita mobiliza racistas e xenófobos no país contrasta com a dificuldade que o Grupo de Ação Conjunta contra o Racismo e a Xenofobia (GAC) enfrenta para juntar 20 mil assinaturas em defesa da criminalização do racismo. O Afrolink deixa-lhe com o essencial desta iniciativa do GAC, percorrida a partir dos esclarecimentos dos juristas Anizabela Amaral e Nuno Silva, que integram a campanha.

O Tribunal da Relação reverteu parcialmente, no passado dia 30 de Abril, a decisão do Tribunal de Sintra relativa ao caso de violência policial contra Cláudia Simões, condenando o agente da PSP Carlos Canha por ofensas à integridade física agravadas, e os seus colegas Fernando Rodrigues e João Gouveia por abuso de poder. A decisão peca, contudo, por insuficiente, assinala, em carta aberta, o Movimento Negro em Portugal (MNP), lembrando que “Cláudia Simões continua condenada e a ver negado o seu direito de legítima defesa perante as agressões de que foi vítima na paragem de autocarro”. Mais: “Embora o Tribunal da Relação tenha, em certa medida, repreendido o coletivo de juízes presidido por Catarina Pires, esta decisão não comporta quaisquer consequências para uma juíza” que, segundo sabemos, irá também julgar o caso de homicídio de Odair Moniz. “Isto não é justiça”, sublinha o MNP, num posicionamento subscrito por mais de 40 colectivos, e que o Afrolink subscreve e publica na íntegra.

Carta Aberta: Sem nós não há justiça: Cláudia Simões continua condenada

A 30 de abril, o Tribunal da Relação reverteu parcialmente a decisão do Tribunal de Sintra quanto ao caso de violência policial contra Cláudia Simões. Condenou Carlos Canha por ofensas à integridade física agravadas e os seus colegas Fernando Rodrigues e João Gouveia por abuso de poder. Foi, sem dúvida, com muita emoção, mas sem ilusões, que recebemos esta decisão, apesar de tudo histórica.

Se o Tribunal de Sintra fez da vítima culpada e do agressor inocente, reproduzindo, uma vez mais, o racismo institucional no sistema de justiça português, a decisão do Tribunal da Relação acabou apenas por repartir a culpa. Ou seja, embora Carlos Canha e os colegas tenham sido finalmente responsabilizados pelas agressões durante a viagem aterrorizadora no carro da PSP, Cláudia Simões continua condenada e a ver negado o seu direito de legítima  defesa perante as agressões de que foi vítima na paragem de autocarro: isto não é justiça. Mais, o racismo continua dado como não provado e os polícias continuam no exercício das suas funções.

Pese embora o Tribunal da Relação tenha, em certa medida, repreendido o coletivo de juízes presidido por Catarina Pires, esta decisão não comporta quaisquer consequências para uma juíza que descredibilizou e humilhou continuamente Cláudia Simões no decorrer das sessões de julgamento. E, como se tudo isto não bastasse, sabemos, por ora, que será a mesma Catarina Pires a julgar o caso de homicídio de Odair Moniz.

Ainda que a decisão do Tribunal da Relação tenha restituído, em parte, a dignidade pública a Cláudia Simões e à sua filha – que tiveram a sua vida esmagada por cinco anos de violência –, o Estado não é capaz de descriminalizar uma mulher negra periférica e de se responsabilizar pela violência racista que inflige. E é por isso que a coragem e persistência de famílias como a de Cláudia Simões e do movimento social são essenciais: construamos solidariedade porque sem nós não há justiça!

Coletivos subscritores

Africandé Associação

Afrolink

Afrontosas

Associação Cavaleiros de São Brás

Associação Cultual Nêga Filmes

Associação Juvenil Esperança

Associação Mural Sonoro

Braga Fora do Armário

BUALA

Coletiva Corpos Insubmissos

Coletivo Afreketê

Coletivo Consciência Negra

Coletivo Feminista de Sintra

Comité de Solidariedade com a Palestina

Comitê Popular de Mulheres em Portugal

Dentuzona

Djass- Associação de Afrodescendentes

Feira Afro Empreededora do Porto

Femafro - Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afrodescendentes em Portugal

Grupo de Ação Revolucionária Antifascista

GTO LX

HuBB- Humans Before Borders

Kilombo - Plataforma de Intervenção Anti-Racista

Mbongi 67

MNE - Mulheres Negras Escurecidas

Nomada Notebooks

NOSSA FONTE – Associação de Intervenção e Difusão Cultural

Núcleo Antifascista de Barcelos

OVO PT | Observatório de Violência Obstétrica em Portugal

Panteras Rosa - Frente de Combate à LesBiGayTransfobia

Parents for Peace

Plataforma Geni

Refugees Welcome Portugal (On The Road - Associação Humanitária)

SaMaNe - Saúde das Mães Negras e Racializadas

SOS RACISMO

Stop Despejos

Teatro GRIOT

The Blacker The Berry Project

UNA - União Negra das Artes

Vida Justa

Vozes de Dentro

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Abrir caminho para cumprir Abril, com Marlete e José Carlos na nossa História

Amplamente reproduzida em outdoors gigantes, cartazes de várias dimensões, sites e redes sociais, a imagem aqui em destaque tornou-se, no ano passado, uma bandeira de exaltação do 25 de Abril. “Foi muito bem tirada. Olhamos para ela e vemos força, poder, todo o vigor da juventude, da luta, e das pessoas da altura”, legenda Victor Correia que, numa habitual viagem pelo IC19, reconheceu nessa fotografia a sua própria história. O Afrolink foi ouvi-la, e encontrou Marlete Duarte Lopes Correia Henriques e José Carlos Duarte Lopes Correia a abrir caminho para a nossa Democracia e Liberdade. Vamos com e como eles. Colectivamente.

Amplamente reproduzida em outdoors gigantes, cartazes de várias dimensões, sites e redes sociais, a imagem aqui em destaque tornou-se, no ano passado, uma bandeira de exaltação do 25 de Abril. “Foi muito bem tirada. Olhamos para ela e vemos força, poder, todo o vigor da juventude, da luta, e das pessoas da altura”, legenda Victor Correia que, numa habitual viagem pelo IC19, reconheceu nessa fotografia a sua própria história. O Afrolink foi ouvi-la, e encontrou Marlete Henriques e José Carlos Correia a abrir caminho para a nossa Democracia e Liberdade. Vamos com, e como eles. Colectivamente.

Marlete Henriques com o irmão Victor Correia, junto da imagem que se tornou bandeira da Revolução

Seguia de carro pelo IC19 quando o impacto se deu. “Eh, pá! Aquelas pessoas parecem os meus irmãos”, lembra-se de pensar, ao avistar um enorme outdoor do lado direito da estrada.

As dúvidas acompanharam a viagem de Victor Correia em direcção a Lisboa, até se desfazerem por completo no regresso.

“Passei pelo mesmo sítio, voltei a olhar e disse: só pode ser. Mas foi mais à frente, a caminho do supermercado, que tirei a prova dos nove, ao encontrar a mesma imagem, embora mais pequena, presa a um poste”.

Já estacionado, e diante do cartaz, Victor confirmou a identidade de um dos dois casais da fotografia: Marlete Duarte Lopes Correia Henriques e José Carlos Duarte Lopes Correia.  Nada mais nada menos do que os seus irmãos.

“Foi uma grande surpresa”, conta ao Afrolink, enquanto remexe memórias de resistência. “Eu tenho a foto original, e sei que quem a tirou fez várias”, acrescenta, assumindo-se como o guardião natural do espólio da família.

“Acabei por ficar com os álbuns porque fui o único a permanecer em Portugal”, explica, de volta às movimentações que marcaram o pré e pós 25 de Abril de 1974.

“Digamos que todos nós, na nossa família, éramos activos na política, em defesa das Independências. Mas a Marlete e o José Carlos eram ainda mais, e especialmente ela. Os dois estavam sempre nas manifestações”.

Desde afixar cartazes por todo o lado, para divulgar protestos, e apelar à mobilização, até ‘acampar’ noite e dia à porta da prisão de Caxias para exigir a libertação de presos políticos, o envolvimento dos irmãos Correia construía-se também a partir de sólidas raízes familiares.

“O meu pai tinha um rádio, e ouvíamos a BBC para ficarmos a par do que estava a acontecer. Lembro-me que quando assassinaram Amílcar Cabral [20 de Janeiro de 1973], disseram que o chefe dos terroristas tinha sido morto. Foi assim que anunciaram”.

Já depois da Revolução, e reconhecidas as Independências dos países ocupados por Portugal, a família Correia – que era originária de Cabo Verde, e tinha chegado ao país em 1969 –, começou a fazer o caminho de regresso.

Símbolo da Revolução de Abril, conquista de africanos e portugueses

José Carlos acabou por se fixar em Cabo Verde, depois de uma temporada por Angola, e Marlete seguiu para a Guiné-Bissau, embora tenha, mais tarde, voltado para Portugal, onde vive actualmente.

Mas é pelas memórias do irmão Victor que prefere que a sua fotografia seja legendada.

“Essa imagem passou a ser um símbolo da Revolução de 25 de Abril de 1974, em que a Marlete e o José Carlos aparecem como representantes das ex-colónias, do fim da guerra colonial”, aponta o empresário, que, entre avanços e recuos cronológicos, recupera outra circunstância do passado.

“Morávamos em plena cidade de Lisboa, ali na Estefânia, mais propriamente na Rua General Farinha Beirão, em que as traseiras dão para a Polícia Judiciária”, recorda, adiantando que, pela proximidade com os calabouços, antes de 1974 era comum os prisioneiros tentarem fugir a partir das suas casas. “Depois os polícias cercavam aquilo tudo e resolvia-se”.

Victor sublinha ainda que, mesmo após o derrube do fascismo e conquista da Democracia, foi fundamental continuar a mobilizar pessoas em defesa do pleno reconhecimento dos países africanos que foram ocupados por Portugal.

“Havia manifestações em Lisboa, organizadas por nós, com milhares de pessoas. E nesses milhares de pessoas estamos a falar de muitos africanos, porque nessa altura tínhamos os movimentos de libertação de Angola, Moçambique, São Tomé, Cabo Verde, Guiné….havia o PAIGC, MLSTP, MPLA, Frelimo, e todos se batiam pela Independência. Estávamos unidos, a bater o pé nesse sentido”.

Fica assim evidente que o contributo africano para o 25 de Abril – do qual se tem falado por causa da resistência que Portugal encontrou nos territórios colonizados –, se fez também de forma expressiva a partir de Lisboa, onde as Casas representantes dos diferentes países concertaram esforços de luta.

“Uma dessas Casas ainda existe no mesmo sítio, ali na Rua Duque de Palmela, mas hoje tem o nome de Associação Cabo-Verdiana”, nota Victor, revelando que, para além de fóruns de estrategização, esses espaços eram igualmente importantes vias de confraternização.

Insistindo na ideia de que importa mostrar que o 25 de Abril foi uma conquista de todos, portugueses e africanos, o irmão de Marlete e José Carlos destaca o quanto a fotografia na génese desta conversa é mais uma prova disso mesmo.

“Foi muito bem tirada. Olhamos para ela e vemos força, poder, todo o vigor da juventude, da luta, e das pessoas da altura”.

Reparemos em todas elas.

A luta por direitos continua a mobilizar Marlete

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Contra a retirada abusiva de crianças às suas famílias, criminalizadas pela pobreza

Sem qualquer notificação, em claro incumprimento do que a lei determina, Carol Archangelo e Carlos Orleans, oriundos do Brasil e residentes no distrito de Viseu, depararam-se com a retirada dos filhos, encaminhados, a partir da escola, para uma família de acolhimento. Já em Lisboa, a são-tomense Ana Paula dos Santos viu uma situação de despejo, executada pela Câmara Municipal de Loures, ser usada como arma para a separar dos filhos, incluindo um recém-nascido.  Casos como estes repetem-se um pouco por todo o país, revelando um padrão por parte do Estado: de racismo, xenofobia, e criminalização da pobreza. O problema vem sendo denunciado há anos, sem que uma verdadeira mudança ocorra, realidade que a antropóloga Rita Cássia Silva pretende transformar. Para isso propõe, por exemplo, “criar um fundo nacional de apoio às mulheres e crianças, direccionando às famílias os valores financeiros entre 1.100 e 3.300 euros mensais que são destinados aos centros de acolhimento de crianças e jovens (instituições privadas e/ou religiosas)”.

Sem qualquer notificação, em claro incumprimento do que a lei determina, Carol Archangelo e Carlos Orleans, oriundos do Brasil e residentes no distrito de Viseu, depararam-se com a retirada dos filhos, encaminhados, a partir da escola, para uma família de acolhimento. Já em Lisboa, a são-tomense Ana Paula dos Santos viu uma situação de despejo, executada pela Câmara Municipal de Loures, ser usada como arma para a separar dos filhos, incluindo um recém-nascido.  Casos como estes repetem-se um pouco por todo o país, revelando um padrão por parte do Estado: de racismo, xenofobia, e criminalização da pobreza. O problema vem sendo denunciado há anos, sem que uma verdadeira mudança ocorra, realidade que a antropóloga Rita Cássia Silva pretende transformar. Para isso propõe, por exemplo, “criar um fundo nacional de apoio às mulheres e crianças, direccionando às famílias os valores financeiros entre 1.100 e 3.300 euros mensais que são destinados aos centros de acolhimentos de crianças e jovens (instituições privadas e/ou religiosas)”.

por Rita Cássia Silva, antropóloga, artista-pesquisadora, ativista de Direitos Humanos, antirracista

Carta aberta – A salvaguarda dos direitos fundamentais e humanos das crianças e jovens junto às suas famílias de origens e a manutenção das suas identidades culturais em Portugal tem de ser um dos pilares mais importantes do Estado Português

Exmo. Senhor Presidente da República Portuguesa, Professor Marcelo Rebelo de Sousa

Exmos. (as) Senhores (as) Parlamentares da Assembleia da República Portuguesa, Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias

Todas as Entidades portuguesas competentes e personalidades relevantes das áreas da Justiça; Educação; Trabalho, Solidariedade e Segurança Social

Promoção dos Direitos das Crianças e Jovens; Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género; Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial.

É com preocupação e indignação que reflito sobre os filhos do casal Carol Archangelo e Carlos Orleans ambos naturais do Brasil, que denunciaram recentemente estarem a ser vítimas de xenofobia e perseguição institucional no exercício da maternidade e paternidade dos seus filhos, por parte da CPCJ (Comissão de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, entidade similar ao Conselho Tutelar no Brasil) de São Pedro do Sul, em Viseu, Portugal. “Não é você que manda nos seus filhos, nem você que decide por eles. E você tem que engolir isso!”, “Fui ameaçado lá, inclusive em ser preso se alterasse o tom de voz" (sobre o tratamento recebido pela Direção da CPCJ de São Pedro do Sul).

É também com preocupação e indignação que reflito sobre as filhas e o filhinho de Ana Paula dos Santos, natural de São Tomé e Príncipe. Conforme compreendi através das informações tornadas públicas nos meios de comunicação portugueses e pelas associações e movimentos civis, a família tem sofrido violência institucional patrimonial e também psicológica, uma vez que a casa em que morava foi demolida pela Câmara Municipal de Loures e, até ao prezado momento, não lhe foi concedido nenhum realojamento, mesmo que o concelho de Loures tenha mais de 9.000 casas vazias. Reflito sobre como uma entidade como a Câmara Municipal de Loures não demonstra ter uma responsabilidade social efectiva nas vidas das pessoas que foram atingidas por ela e sobre como isto impacta a sociedade em que vivemos nos tempos correntes. Uma vez que há mais famílias a vivenciar situações destas sem que haja responsabilidades por parte da Câmara. 

Segundo as informações tornadas públicas por meio das redes sociais e dos demais meios de comunicação no Brasil e em Portugal, as crianças filhas do casal brasileiro Carol Archangelo e Carlos Orleans foram levadas da escola por profissionais do ISS (Instituto da Segurança Social) em meados do mês de março do corrente ano, sem que mãe e pai tivessem conhecimento algum, diretamente para uma família de acolhimento. No entanto, as crianças não eram maltratadas por seus pais. Estavam a ser acompanhadas por uma medida de promoção e proteção pela CPCJ junto aos pais. Esta situação terá ocorrido devido a uma sinalização inicial que foi feita por uma professora numa escola, quando a criança mais pequena tinha 4 anos de idade e demonstrava estar cansada. Segundo denúncia da mãe das crianças, houve um documento escrito por duas pessoas com manifesto preconceito: “Demonstraram sempre que não gostavam da gente, por um julgamento pelo nosso estereótipo e profissão”. 

Tendo em consideração que crianças são seres humanos em pleno desenvolvimento, e que têm as suas particularidades comportamentais, que deveriam ser devidamente respeitadas, principalmente em muitas das escolas portuguesas, onde crianças imigrantes e/ou filhas de pessoas com percursos de migração, crianças com NEE (necessidades educacionais especiais) e crianças com deficiência têm vindo a ser maltratadas, discriminadas e negligenciadas por parte de profissionais da educação, reflito se esta criança não estaria a ser discriminada pelo facto dos seus pais serem tatuadores e terem a nacionalidade brasileira. É facto que a profissão de tatuador em Portugal gera preconceitos sociais, porque a prática da tatuagem no senso comum é interpretada ora associada com contextos de criminalidade, ora associada com contextos culturais dos povos não-europeus. Algo herdado do pensamento científico europeu a partir do século XIX. No entanto, a tatuagem é uma das mais antigas expressões humanas, podendo preceder à palavra. 

Tendo em consideração a LPCJP (Lei de Proteção às Crianças e Jovens em Perigo), artigos 84.º, 85.º, 86.º, 94.º, 103.º, 104.º, 107.º e 114.º e a CSDC (Convenção Sobre os Direitos das Crianças), artigos 5.º (orientação da criança); artigo 12.º (opinião da criança); artigo 17.º (acesso à informação) e artigo 18.º (responsabilidade parental), tanto as crianças como os seus representantes legais, no caso específico de Carol Archangelo e Carlos Orleans, mãe e pai das crianças, deveriam ter sido institucionalmente informados sobre todos os procedimentos relacionados com a medida de promoção e proteção das crianças aplicada pela CPCJ de São Pedro do Sul, Viseu. Ora, mãe e pai denunciaram que ficaram aterrorizados quando receberam a notícia por parte de agentes da polícia local sobre a retirada institucional dos seus filhos, a partir da escola. Eles não foram informados institucionalmente que havia a possibilidade dos seus filhos serem encaminhados para uma família de acolhimento. 

Reflito que se não havia maus-tratos familiares contra as crianças, certamente as crianças vivenciaram e estão ainda a vivenciar o trauma de estarem a ser privadas das suas principais referências afectivas sem que compreendam o porquê de tal acontecimento. Este tipo de procedimento não coloca as crianças em perigo psicologicamente? Não potencializa doenças? Li que após terem sido levadas da escola, as crianças passaram quatro dias sem ver a mãe e o pai e só estiveram com eles durante 45 minutos

Considero que tais procedimentos devem ser devidamente investigados pelas entidades portuguesas competentes na matéria e devidamente acompanhados pelos Consulados Gerais do Brasil em Portugal. As famílias não podem ser discriminadas institucionalmente em situações que envolvem a necessidade de criação de estratégias e entendimento mútuo em prol do bem-estar de crianças e jovens, não podem ser violentadas em seus direitos fundamentais e humanos. 

Mãe e pai, Carol Archangelo e Carlos Orleans, são pessoas trabalhadoras, brasileiras, como inúmeras famílias brasileiras que vêm para Portugal criar melhores condições de vida e viver sem o perigo de enfrentar violências no quotidiano urbano das grandes e pequenas cidades no Brasil. Trabalham em Portugal e contribuem para o desenvolvimento económico e sociocultural do país através da arte realizada no exercício das suas profissões enquanto tatuadores.

Integram a comunidade brasileira que, juntamente com comunidades imigrantes de outros países sul-americanos, africanos, asiáticos, europeus, sustentam o sistema de segurança social português. Nenhuma família, nem imigrante, nem natural de Portugal, deveria vivenciar situações traumatizantes como esta. 

Quanto às violências patrimonial, psicológica e institucional que estão a ser desferidas pela Câmara Municipal de Loures contra a mãe Ana Paula dos Santos e a sua família, é preciso refletir que além de terem ficado sem casa, Ana Paula estava grávida e vivenciou com as suas crianças o impensável: ameaças institucionais de que haveria uma separação familiar por parte da CPCJ e que a mãe não sairia da maternidade com o seu filho nascituro nos braços se não tivesse uma morada. As assistentes sociais deram-lhe um prazo de 8 dias para que ela conseguisse uma casa em condições para toda a sua família. 

Em um país onde o salário mínimo mensal é de 870€ e o arrendamento de um T2 no concelho de Loures não custa menos que um salário mínimo, com exigências de pagamentos de uma a três rendas adiantadas enquanto pagamento de caução e existência de uma pessoa fiadora, como uma mulher trabalhadora, mãe de família pode se governar? Há neste momento uma constante pressão por parte das assistentes sociais do ISS (Instituto de Segurança Social Portuguesa) para que Ana Paula consiga uma casa. Ana Paula e a sua família estão ainda salvaguardadas numa pensão assegurada pelo ISS, localizada fora do concelho de Loures e sem condições (na pensão não se pode cozinhar, só dormir). As violências psicológica, patrimonial e institucional que foram iniciadas durante o período do pré-parto da mãe Ana Paula dos Santos, auxiliar efetiva num lar de idosos, continuam na fase do pós-parto. Ana Paula é uma mulher trabalhadora com percurso de migração para Portugal. É muito importante que estas violências parem de ser desferidas. Ana Paula dos Santos e a sua família, bem como outras famílias que estão a vivenciar o mesmo, necessitam de paz e de soluções que possam salvaguardá-las nos seus direitos fundamentais e humanos. 

Os problemas de vulnerabilidades sociais, como violência doméstica, falta de recursos financeiros, falta de rede de apoio familiar, desemprego, falta de habitação, não podem ser critérios para haver separações familiares institucionalmente. Muito menos que permitam que mulheres parturientes saiam das maternidades portuguesas sem os seus filhos e filhas nos braços, como já aconteceu num passado recente e como infelizmente continua a acontecer. Tais problemáticas devem ser resolvidas através da implementação de políticas públicas que possam potencializar o fortalecimento das mulheres e famílias, para que as crianças não tenham de enfrentar o aprofundamento da vivência da pobreza material e do adoecimento psíquico em seus corpos, com a perda das suas principais referências afetivas e, em muitos casos, com a perda das suas identidades culturais. Retiradas de crianças às mulheres-mães, pais e famílias através de procedimentos irregulares, sem factos comprovados de violências familiares e com criminalização da pobreza, reproduzem violências coloniais e são práticas que devem ser devidamente erradicadas. 

Face às situações que estão a ocorrer é relevante recordar que faz exatamente sete anos, neste ano de 2025, que um coletivo formado por ilustres personalidades com diferentes trajetórias de vida, naturalidades, nacionalidades, profissões, bem como organizações da sociedade civil, lutaram perante a Assembleia da República Portuguesa – Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, para que o sistema de proteção à infância e juventude em Portugal pudesse não ter falhas que impedissem crianças e jovens de crescerem saudavelmente junto aos seus familiares. Anabela da Piedade, Dr. António Garcia Pereira, Dr. Gameiro Fernandes, Dra. Rita Cássia Silva, Sra. Amélia dos Santos, Alexandra Borges, Judite França, Ana Vilma Maximiano, Dra. Dulce Galvez, Paula Sequeira, Francisca Magalhães de Lemos, Anabela Caratão, Cristina Bártolo, Nádia Penas. Mulheres-mães de origens portuguesas, brasileiras e africanas, homens-pais, todas e todos tornados vítimas de violências institucionais atrozes. Amarca – Associação e Movimento de Alerta à Retirada de Crianças e Jovens, Não Adoto Este Silêncio – Movimento Verdade, UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta, Dignidade – Associação para os Direitos das Mulheres e Crianças, APMJ – Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. 

Portugal passou por um acordar através do conhecimento tornado público nos meios de comunicação portugueses sobre situações de violências institucionais desferidas contra crianças e jovens, mulheres-mães (maioritariamente), avós, homens-pais, famílias que estavam a perder as guardas dos seus filhos e filhas, que, por sua vez, estavam a ser institucionalizados indevidamente ou entregues pela justiça a homens-pais agressores de mulheres e crianças. Foram detetadas práticas de escritas de relatórios sociais sem factos comprovados, relatórios psicológicos caluniosos, escritas e discursos discriminatórios, racistas, xenófobos, misóginos, perseguições institucionais... Tais demandas potencializaram um debate televisivo, a primeira série informativa da televisão portuguesa, reportagem jornalística, jornalismo de investigação na TV pública, diferentes modos de denúncias, matérias jornalísticas, uma petição cidadã com mais de 5.000 assinaturas (Não Adoto Este Silêncio – adoções ilegais da IURD e abertura de uma Comissão de Inquérito Parlamentar), reflexões, entre outras iniciativas.

 Parece-me salutar que seja da responsabilidade da Assembleia da República Portuguesa - Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, a formação de uma equipa investigativa formada por especialistas independentes e diversos culturalmente para investigar os procedimentos irregulares no âmbito de separações familiares no sistema de proteção de crianças e jovens. Conforme sugestão do ilustre Deputado António Filipe, do PCP (Partido Comunista Português), em 2018, na sua intervenção no âmbito da petição N.º460/XIII (3.ª)

Como consequências das lutas civis no âmbito da proteção de crianças e jovens em Portugal perante violações de direitos fundamentais e humanos das crianças e famílias, considero ser relevante que mantenhamos as nossas memórias bem lúcidas e que as organizações formadas por pessoas das comunidades imigrantes tenham acesso ao conhecimento: 

A nível governamental, o Presidente de Portugal, Professor Marcelo Rebelo de Sousa, promulgou a Lei n.º 39/2019, 2019-06-18. Um projeto Lei que foi proposto na Assembleia da República, por parte do PCP (Partido Comunista Português), após a audição no âmbito da Petição N.º 460/XIII/3. Todos os partidos políticos portugueses votaram a favor, com a surpreendente abstenção do PS (Partido Socialista). Na prática, profissionais como juízes, procuradores, assistentes sociais, psicólogos, advogados, dirigentes religiosos, entre outros, não podem ser membros dos órgãos sociais de centros de acolhimentos de crianças e jovens considerados como estando em perigo e trabalharem em seus processos, relatórios sociais e outros documentos de crianças e jovens que vão ser colocados nestes mesmos centros de acolhimento. No entanto, é preciso ter umaespecial atenção, porque conforme o próprio Presidente Marcelo refletiu, a Lei poderia ter ido mais longe ao abranger também os profissionais técnico das instituições visadas que são quem frequentemente está em contacto directo com as situações em análise. 

O Estado Português foi condenado pelo TEDH – Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, devido ao processo de Anabela Caratão, cidadã de origem portuguesa que foi vítima de violência doméstica, e que teve os seus dois filhos bebés gémeos separados dela e entre si pela CPCJ, dentro de um hospital no concelho de Loures. Anabela Caratão, que era artista plástica, ficou totalmente impedida de conviver com os seus filhos e quando lhe encaminharam para começar a fazer visitas assistidas por profissionais da assistência social, a entidade onde as tais visitas deveriam ocorrer cobrou-lhe financeiramente para que Anabela Caratão pudesse ver o próprio filho.

Houve a condenação de duas profissionais da assistência social do ISS – Instituto da Segurança Social, que foram responsáveis pela prática da retirada das filhas de Ana Vilma Maximiano, cidadã de origem portuguesa que foi vítima de violência doméstica e ameaçada de ter as suas filhas institucionalizadas. No entanto, encaminharam duas crianças ao agressor de Ana Vilma e a outra criança a um progenitor totalmente ausente, desvinculado afetivamente da criança. Ana Vilma Maximiano que era funcionária pública, fez greve de fome em frente ao Palácio da Presidência da República, em Lisboa, a fim de denunciar as violências institucionais que estavam a ser desferidas contra as suas filhas e contra si, e fundou, com outras mulheres – mães e famílias vítimas de violências privadas e/ou institucionais –, a associação civil AMARCA – Associação de Alerta à Retirada de Crianças e Jovens. 

Em 2021, ainda no rescaldo da pandemia de COVID-19, com o apoio da DGArtes e de entidades parceiras portuguesas (Apuro, Femafro, Teatro Bocage), mulheres-mães imigrantes naturais do Brasil, de Portugal e de África, que foram vítimas de violência doméstica e institucional por parte do Estado Português e do Estado Brasileiro, puderam denunciar tais violências através da ficção. O projeto Epifanias Artes: audioblogue, com e para pessoas que sonham igualdade, lançou uma série de cinco performances radiofónicas cujas transmissões em direto de cada um dos cinco episódios foram seguidas de conversações aprofundadas com ilustres personalidades da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). Algo que foi inovador em Portugal, dado que mulheres tornadas vítimas de violências institucionais são quase sempre silenciadas e invisibilizadas pelas instituições. Esta intervenção gerou um relatório onde propus ao governo português sugestões de boas práticas como: criar a possibilidade das mães, se assim o quiserem, poderem acompanhar seus filhos e filhas pequenos durante os primeiros anos de vida (1 - 4), anos estes que são cruciais para o desenvolvimento da saúde na infância, tendo como exemplo os países nórdicos; erradicar a prática de privação materna institucional com a desvinculação materno-afetiva entre mães e filhos – violência de género e violência contra a criança, dado que se trata de uma prática secular; criar legislação para criminalização de práticas de escritas de relatórios sociais e/ou psicológicos caluniosos, omissos, racistas, xenófobos e/ou discriminatórios contra mulheres e crianças, e no geral; possibilitar a implementação de financiamento para a criação de redes comunitárias para que crianças possam ser cuidadas por pessoas em que mães, pais e encarregados de educação conheçam e confiem, durante os seus períodos laborais; salvaguardar as crianças de situações de pobreza extrema e outras violências, aquando de situações de desemprego das suas mães e famílias: nenhuma mulher deveria ficar sem ter acesso ao apoio social de um valor básico de sobrevivência que lhe permita sobreviver com os seus filhos e filhas; salvaguardar crianças e mulheres em situações que estejam a vivenciar algum tipo de vulnerabilidade social e a necessitar de habitação. Mães e filhos não podem ser colocados na rua, como pudemos observar através das redes sociais e da comunicação social, durante o período de pandemia/sindemia, nem mulheres podem parir sem assistência alguma, na rua e serem criminalizadas, como no caso da jovem mulher cabo-verdiana Sara Furtado, entre outras sugestões.

Apesar de ter recebido a confirmação de receção do relatório por parte do Gabinete do Primeiro – Ministro, na altura, Dr. António Costa, até o prezado momento não disponho de informações sobre os debates políticos que deveriam existir em torno das temáticas outrora apresentadas e que continuam a suscitar profundas reflexões, uma vez que mulheres, crianças e famílias continuam a ser separadas devido às práticas seculares que são inconcebíveis neste nosso século. 

A região norte de Portugal, onde o casal brasileiro Carol Archangelo e Carlos Orleans reside, é emblemática no que diz respeito às práticas de revitimizações de mulheres e crianças, tornadas vítimas de violências privadas e/ou institucionais. Vergonhosos tratamentos decorreram no Norte, contra as cidadãs brasileiras ex-vítimas de violência doméstica: Liliane Fraga, Adriana Botelho e Karine Ribeiro. Desde a retirada da criança, ainda sendo amamentada pela mãe, por parte da CPCJ, para entrega à família de homem agressor, passando por expulsão de casa com ajuda da força policial e retirada de criança com alegações de juiz a dizer que não sabia se a mãe de nacionalidade brasileira era de “favela” ou “empresária”, até sequestro de criança do Brasil para Portugal. Seria fundamental que o Governo português se atentasse de facto aos modos ignóbeis com que muitas das mulheres e crianças e famílias de nacionalidade brasileira ou com dupla nacionalidade têm vivenciado em seus corpos por parte de instituições. Até o prezado momento não há conhecimento por parte de organizações civis feministas brasileiras, organizações de direitos humanos ou pelo Instituto Maria da Penha que mulheres e crianças de nacionalidade portuguesa sejam torturadas psicologicamente, fisicamente e/ou patrimonialmente no Brasil. 

Por fim, como é de conhecimento público, o Estado Português faculta aos centros de acolhimentos de crianças e jovens considerados em perigo, valores financeiros entre 1.100 e 3.300 euros mensais por cada criança/jovem a viver em instituições. O Plano de Ação de Garantia à Infância (2022-2030), lançado pelo governo português, liderado pelo PS, em Janeiro de 2023, preconiza a promoção dos direitos das crianças tendo em vista a melhoria da educação, saúde, segurança e proteção, a fim de que possam crescer em ambientes familiares e sociais saudáveis. Para tal, assume o objetivo de desinstitucionalização das crianças e jovens progressivamente. Bem como, a necessidade de haver famílias de acolhimentos ao invés de centros de acolhimentos em Portugal (uma responsabilidade que certamente vai ao encontro dos encaminhamentos da ONU, em relatórios sobre as consequências das institucionalizações na saúde mental das crianças, jovens e adultos).

Pergunto-vos se ao criar um fundo nacional de apoio às mulheres e crianças, direcionando às famílias os valores financeiros entre 1.100 e 3.300 euros mensais que são destinados aos centros de acolhimento de crianças e jovens (instituições privadas e/ou religiosas), o Estado Português não estará a potencializar a dignificação das famílias, salvaguardando o direito das crianças às suas famílias de origens, às suas identidades culturais, o direito das mulheres a viver com plenitude a maternidade, não potencializará a confiança social nas instituições do Estado? O desenvolvimento da saúde coletiva, ao invés de doenças psicossomáticas? 

Pergunto-vos se ao criar um plano de formação nacional obrigatório para todas as pessoas profissionais das áreas da assistência social, justiça, psicologia, educação, entre outras, onde possam acessar aos conhecimentos sobre origens e consequências do racismo, da xenofobia, da discriminação de género, da aporofobia, do classismo, da discriminação religiosa, da revitimização de violências, o Estado Português não estará a potencializar uma consciencialização coletiva sobre ética, direitos fundamentais, direitos humanos, deveres e a aprendizagem de metodologias não excludentes?

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Estamos a normalizar a barbárie: entre a indignação pontual e o silêncio estrutural

Num “gesto provocador”, conforme o apresenta, a empresária de impacto social, Myriam Taylor, perguntou ao ChatGPT: “Se fosses o diabo, como destruirias a Humanidade?”. A resposta, conta-nos, foi clara: “Através da erosão da empatia, da glorificação do ego, da divisão, da normalização da injustiça, da destruição da confiança e da apatia perante o sofrimento”. Mais do que notar que é “exatamente o caminho que estamos a seguir”, neste artigo de opinião Myriam aponta soluções. “O desafio é claro e urgente: precisamos de resgatar a ideia de coletivo. De voltar a ensinar – em casa, nas escolas, nos media – que a liberdade e a justiça não são bens individuais. Que sem compaixão, sem responsabilidade partilhada, não há sociedade possível”.

Num “gesto provocador”, conforme o apresenta, a empresária de impacto social, Myriam Taylor, perguntou ao ChatGPT: “Se fosses o diabo, como destruirias a Humanidade?”. A resposta, conta-nos, foi clara: “Através da erosão da empatia, da glorificação do ego, da divisão, da normalização da injustiça, da destruição da confiança e da apatia perante o sofrimento”. Mais do que notar que é “exatamente o caminho que estamos a seguir”, neste artigo de opinião Myriam aponta soluções. “O desafio é claro e urgente: precisamos de resgatar a ideia de coletivo. De voltar a ensinar – em casa, nas escolas, nos media – que a liberdade e a justiça não são bens individuais. Que sem compaixão, sem responsabilidade partilhada, não há sociedade possível”.

Myriam Taylor perguntou ao ChatGPT: “Se fosses o diabo, como destruirias a Humanidade?”

Texto de Myriam Taylor

Vivemos tempos de distanciamento emocional profundo. Um tempo em que o grito coletivo foi substituído por um scroll distraído. Onde a empatia deixou de ser um impulso natural para se tornar uma raridade. Onde o sucesso é medido pelo isolamento vitorioso, e não pela construção partilhada.

Estamos a educar crianças e jovens para o desempenho, não para a consciência. Ensinamos a competir, não a cooperar. A destacar-se, não a cuidar. E o resultado está à vista: uma sociedade muitas vezes incapaz de reagir com profundidade e continuidade à dor do outro.

Na semana passada, Portugal foi confrontado com um crime chocante: uma menor foi violada por três jovens que filmaram o ato e partilharam as imagens nas redes sociais. O caso foi amplamente noticiado e houve manifestações de indignação pública – por parte de cidadãos, organizações e plataformas de direitos humanos. No entanto, esta comoção, apesar de genuína, esbate-se rapidamente na espuma dos dias. Falta-nos continuidade, estruturas de proteção eficazes e um grito coletivo que dure mais do que um ciclo de notícias.

Este caso não é uma exceção. É um reflexo. O mesmo padrão repete-se em escala global. Em Gaza, mulheres e crianças são massacradas todos os dias, com o mundo a assistir. No Congo, mulheres continuam a ser vítimas de violência sexual extrema como arma de guerra, e crianças são exploradas como mão de obra escrava na extração de coltan e outros recursos que alimentam os nossos dispositivos digitais. Há indignações pontuais, sim – mas o que se impõe é um silêncio estrutural, normalizador.

A barbárie já não choca como deveria. Está a ser digerida em pequenas doses – e isso é perigosíssimo. Porque a barbárie instala-se não com gritos, mas com ausências: de cuidado, de mobilização, de responsabilização.

Quando educamos apenas para o “eu”, matamos o “nós”. E quando o “nós” desaparece, deixamos de reconhecer a dor do outro como nossa.

O desafio é claro e urgente: precisamos de resgatar a ideia de coletivo. De voltar a ensinar – em casa, nas escolas, nos media – que a liberdade e a justiça não são bens individuais. Que sem compaixão, sem responsabilidade partilhada, não há sociedade possível.

Esta inquietação levou-me, num gesto provocador, a perguntar ao ChatGPT: “Se fosses o diabo, como destruirias a Humanidade?”.  A resposta foi clara: através da erosão da empatia, da glorificação do ego, da divisão, da normalização da injustiça, da destruição da confiança e da apatia perante o sofrimento. Soa familiar? Porque é exatamente o caminho que estamos a seguir.

Mas ainda há tempo. Este texto não é só um grito. É um apelo. Que sejamos vizinhos atentos, cidadãos ativos, educadores conscientes. Que não deixemos o horror passar como mais um vídeo no feed.

Estamos num ponto de viragem. Somos todos chamados a tomar uma posição. Em que lado escolhemos estar?

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Eva Rapdiva - o backlash em dois países e a urgência de falarmos sobre múltipla pertença e legitimidade

Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais, pós-graduada em Gestão Financeira e mestranda em Desenvolvimento Global, Eva Cruzeiro, popularizada pelo nome artístico Eva Rapdiva, é candidata a deputada pelo Partido Socialista, ocupando a 8.ª posição na lista do círculo eleitoral de Lisboa. A notícia está a desencadear uma onda de contestação, sobre a qual Myriam Taylor, empresária de impacto social, reflecte neste  artigo de opinião.

Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais, pós-graduada em Gestão Financeira e mestranda em Desenvolvimento Global, Eva Cruzeiro, popularizada pelo nome artístico Eva Rapdiva, é candidata a deputada pelo Partido Socialista, ocupando a 8.ª posição na lista do círculo eleitoral de Lisboa. A notícia está a desencadear uma onda de contestação, sobre a qual Myriam Taylor, empresária de impacto social, reflecte neste artigo de opinião.

Texto de Myriam Taylor

A nomeação de Eva Rapdiva para a lista do Partido Socialista às eleições legislativas fez estalar um debate que ultrapassa largamente as fronteiras da política. Assistimos a uma reacção em cadeia — tanto em Portugal como em Angola — que, mais do que qualquer questão partidária, nos convida (ou obriga) a reflectir sobre pertença, identidade e legitimidade.

Eva é, ao mesmo tempo, portuguesa e angolana. Não “meio de cá e meio de lá”. É de cá e de lá, inteira. Afro-europeia, mulher, artista, com uma voz pública forjada na denúncia da injustiça social e racial. E é precisamente essa pluralidade que parece ter incomodado tantos, em dois contextos que, embora distintos, continuam a resistir à ideia de múltiplas identidades coexistirem num mesmo corpo, numa mesma história.

Em Portugal, vimos os ataques de sempre: o questionamento sobre quem tem direito a representar o país. Como se a negritude fosse um corpo estranho à identidade portuguesa, como se o simples facto de Eva existir e falar com autoridade fosse uma afronta à ordem estabelecida. Já em Angola, surgiram críticas num registo diferente, mas igualmente revelador — a ideia de que o envolvimento dela na política portuguesa significaria um afastamento das raízes ou um “esquecimento” da pátria.

Importa recordar, neste contexto, que há alguns anos a então deputada e líder do CDS, Assunção Cristas, mostrou no Parlamento o seu passaporte angolano com orgulho — e esse gesto, embora simbólico, nunca suscitou qualquer tipo de comoção social, muito menos indignação pública. Nenhum debate sobre "dupla lealdade", nenhuma exigência de explicações sobre "a quem serve". O contraste é gritante. E diz muito sobre como a cor da pele e a origem racializada continuam a definir a forma como legitimamos (ou não) a presença de alguém nos espaços de poder.

É curioso (e doloroso) constatar como, mesmo nos espaços que deviam acolher-nos, continuamos a ser desafiadas a “escolher um lado”. Como se a nossa existência tivesse de caber numa única caixa, numa só bandeira, numa só narrativa. Mas nós, filhas da diáspora, somos feitas de muitas camadas. E isso não é uma falha — é uma força.

A reacção à candidatura da Eva mostra-nos como ainda há um longo caminho a percorrer na aceitação da pluralidade identitária. Mas também revela que a sua presença incomoda porque quebra expectativas. Porque desloca o centro. Porque obriga-nos a repensar o que significa ser portuguesa, ser angolana, ser europeia — e quem tem o direito de ocupar os lugares de decisão.

Eva Rapdiva não está “a ser permitida” ocupar um espaço. Está a reclamar, com legitimidade e mérito, um lugar que também é seu. E isso é revolucionário. Não apenas para ela, mas para todas nós que crescemos a ouvir que não era para “gente como nós”.

Que este momento sirva para nos unirmos em torno de algo maior: a construção de uma sociedade que abrace a complexidade das nossas existências. Que reconheça que somos plurais, móveis, e que isso não nos torna menos, mas muito mais.

Eva representa a possibilidade de um novo tempo. E é nosso dever assegurar que essa possibilidade floresça — com coragem, com dignidade e com amor.

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Plantar vida humana, colher regeneração e celebrar, ou, numa palavra: Úlulu

Entre viagens a São Tomé e Príncipe, destino que marcou a sua rota durante cerca de três anos, a artista transdisciplinar Raquel Lima encontrou raízes que desconhecia, e, a partir delas, começou a ‘escavar’ memórias e rituais que cultivam outros saberes e fazeres, terreno fértil para plantar futuros alternativos. A performance “Úlulu” floresce dessa sementeira, e estreia-se hoje, 3, às 19h30, no TBA – Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, pretexto para o Afrolink conversar com a criadora. Em palco acompanhada da mãe, Maria Palmira Joaquim, e do músico Okan Kayma, Raquel desafia-nos a sentir. Sem “querer fechar uma interpretação daquilo que está em cena, queremos que o público se questione”.

Entre viagens a São Tomé e Príncipe, destino que marcou a sua rota durante cerca de três anos, a artista transdisciplinar Raquel Lima encontrou raízes que desconhecia, e, a partir delas, começou a ‘escavar’ memórias e rituais que cultivam outros saberes e fazeres, terreno fértil para plantar futuros alternativos. A performance “Úlulu” floresce dessa sementeira, e estreia-se hoje, 3, às 19h30, no TBA – Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, pretexto para o Afrolink conversar com a criadora. Em palco acompanhada da mãe, Maria Palmira Joaquim, e do músico Okan Kayma, Raquel desafia-nos a sentir. Sem “querer fechar uma interpretação daquilo que está em cena, queremos que o público se questione”.

De cima: Okan Kayma, Raquel Lima e Maria Palmira Joaquim, fotografados por Pedro Jafuno

Num vai-e-vem que se tornou rotina, entre a morada em Portugal e uma investigação académica em São Tomé e Príncipe, Raquel Lima aterrou numa palavra: Úlulu. “Significa placenta”, traduz a poeta e artista transdisciplinar, enquanto busca entendimentos que vão muito além de dicionários, e da expressão em língua em forro.

“As pessoas referem-se a úlulu como um ritual. Falaram-me dessa prática antiga, de enterrar, nos quintais de casa, a placenta e o cordão umbilical dos recém-nascidos, para que, mais tarde, por mais que cresçam e viajem, saibam sempre como voltar ao lugar de origem”.

Fascinada com essa ideia de “retorno simbólico”, a também investigadora relaciona-a com as suas próprias viagens.

“O meu pai é de São Tomé, mas fui educada pela minha mãe, que é angolana. Então, não cresci com a cultura são-tomense próxima. Toda essa parte fui conquistar, de certa forma, já adulta, depois dos 30 anos”.

Ainda a ligar os pontos da própria história, Raquel encontra no úlulu não apenas identificação individual, mas também conexão colectiva.  “Acho que toda a diáspora negra, em parte, passa por esse percurso, que é este lugar de Sankofa, de olhar para trás”.

Nesse “retorno”, a artista calibra perspectivas: “Passei a dizer plantação da placenta, em vez de enterro, porque tem essa ideia de germinar uma ligação inequívoca, e para sempre, com a pessoa que nasce”.

O movimento de leitura e releitura, fincado em São Tomé e Príncipe, permitiu deslindar novas ‘sementes’. “Ao longo da minha pesquisa, fui percebendo que há outros países com rituais semelhantes”, indica Raquel, explicando que no Brasil, por exemplo, há relatos de oferenda da placenta ao mar – em reverência a Iemanjá –, como forma de protecção contra infortúnios de afogamentos, e atracção de prosperidade e abundância. Já na Colômbia, para prevenir eventuais derivas criminosas, coloca-se o cordão umbilical dentro de uma pequena caixa, para que os ratos não o apanhem, “porque se algum o comer, a criança pode tornar-se ratera, ou seja, ladra”.

Unidos pelo momento da nascença, os diferentes rituais cruzam-se na performance “Úlulu”, que se estreia hoje, 3, às 19h30, no TBA – Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, e pode ser vista até sábado, 5.

“A certa altura, vamos ouvir uma senhora na Colômbia, num quilombo de São Basílio de Palenque [considerada a primeira cidade negra livre de toda a América]”, aponta a criadora do espectáculo, antecipando outras participações. “Também vamos escutar uma senhora de Olinda, que fica em Recife, no Brasil, e outra que está em São Tomé, a falar em forro”.

Interessada em contrastar as múltiplas versões desse ritual, Raquel faz do palco um espaço de expressão documental, desde o primeiro momento alargado aos espectadores.

Ritualizar a ida ao teatro

“Não queremos que seja um espectáculo em que as pessoas entram, assistem, aplaudem e vão embora. O público está connosco, acompanha os nossos rituais, tenta ganhar consciência dos seus próprios rituais individuais…do que é fazer um gesto ritualístico e colectivo. E, se tudo correr bem, depois continua esse exercício em casa”.

A proposta, antecipa a artista transdisciplinar, é de “tirar um bocadinho o teatro do lugar de consumo. Ou seja, se a ida ao teatro também for um ritual, como é que essa prática pode acontecer?”.

Desde logo, aponta a criadora de “Úlulu”, “há uma procura de gerar um certo desconforto no público”, a partir da noção de que existe alguma ansiedade à chegada para um espectáculo, de “começar a atribuir significados, a tentar perceber para onde é que as personagens vão”.

Sem nos darmos conta, cena após cena, dia após dia, desabituamo-nos de apenas estar e ficar em silêncio. Aliás, questiona Raquel, em que medida chegamos ao lugar que ocupamos numa plateia? Estamos inteiros e disponíveis para a experiência, ou cheios de ausências que tornam o corpo visível, mas não presente?

Entre questionamentos, a poeta continua a ensaiar respostas. Reconhece, por exemplo, que “o texto não pode ser tão importante”, porque “o silêncio tem de prevalecer, tal como o gesto, e o movimento”.

Além do desafio de despir “Úlulu” de ‘demasiados’ palavras – “tinha um texto muito maior, e tive de o lapidar” –, a artista propõe-se vestir a performance de um certo breu.

“O que se faz no escuro? Pretendo contrariar a ideia de iluminismo e da projecção de luz como um lugar de revelação, porque na penumbra também se revela muita coisa”.

É disso exemplo o mito de Nanã, pontua Raquel, que traz a referência do Candomblé. “Nanã foi buscar terra ao fundo da lagoa, lugar de escuridão, para Oxalá criar a Humanidade. Então, interessa-me trabalhar a obscuridade e o tempo para respirar, que também é o tempo de gestação, embora não necessariamente de gestar, mas de virmos desse silêncio, desse úlulu, dessa placenta no escuro”.

Aqui, de novo, encontramos uma ideia de retorno às origens, agora externalizada na relação com a audiência.

No ciclo de vida

Sem “querer fechar uma interpretação daquilo que está em cena, queremos que o público se questione sobre os seus gestos quotidianos, sobre os seus lugares de pertencimento, que compreenda que pertencemos acima de tudo, ao nosso corpo, e que reflicta sobre como é que esse corpo gera o nosso próprio lugar”.

Em palco acompanhada da mãe, Maria Palmira Joaquim, e do músico Okan Kayma, a criadora desafia-nos a sentir.

“Vamos estar sempre a pedir ao público para interagir, para que possa chegar plenamente. Por exemplo, através de rituais muito pequeninos, em que as pessoas não têm de sair do lugar, não têm de se sentir desconfortáveis nem expostas”.

Nesta espécie de viagem de regresso a nós próprios, geográfica e emocionalmente impulsionada, “Úlulu” convoca-nos também a olhar para o Planeta.

“Nós não somos o centro, estamos aqui de passagem, com os nossos retornos, as nossas migrações. Mas há um lugar de parar, observar e escutar a Natureza: o que é que diz uma cascata? O que diz uma rocha? O que dizem as fibras vegetais?”.

Entre diálogos, Raquel sublinha que a regeneração planetária não tem de se fazer necessariamente através do ser humano. “Ainda que nós desapareçamos do planeta, há materiais que ficam, nomeadamente as fibras vegetais, com as quais nós vamos trabalhar muito em palco. Porque esses materiais vão ter histórias para contar e, eventualmente, vão-se regenerar”.

Partindo da ideia de que “existem rituais que servem exactamente para nos conectar com o Planeta”, a investigadora destaca a importância do “cuidado com o gesto ritualístico quotidiano”, que inclui rotinas como lavar os dentes ou a automassagem.

“Como é que esses momentos não só são retorno ao corpo, mas muitos deles estão-nos a falar sobre uma ligação ancestral ao próprio Planeta?”.

O úlulu abre muitas possibilidades de resposta.

“Plantar uma placenta é extremamente potente, porque é uma parte de nós poderosíssima em termos de sistema imunitário e células estaminais”, nota Raquel, realçando o efeito expansor deste ritual. “Imaginemos, então, como a quantidade de úlulus plantados em São Tomé fertiliza o próprio solo. Imaginemos esse lugar do nosso corpo voltar à terra enquanto composto que se decompõe, para depois germinar e criar mais vida”. Ciclicamente.

 “O úlulu dá-me esta ideia de ritmo, de um mantra circular e do movimento repetitivo, mas que nunca se repete porque é sempre diferente. Então, é um pretexto para falar de outro tipo de ligações mais globais”.

Regeneração colectiva e celebração

Diante das ameaças que vivemos, em que a Paz e a Justiça surgem cada vez mais fragilizadas perante sucessivas crises – do clima às migrações, passando pela democracia –, podem os rituais de “retorno” às origens oferecer uma via de regeneração colectiva? Haverá futuro sem respeitar os ciclos e ritmos da natureza humana e ambiental?

“Eu tento não romantizar porque, realmente, quando olhamos à volta vemos muito colapso a acontecer, e é importante ter essa consciência. Mas eu também digo que há aqui um lugar de esperança”, nota Raquel, antes de declamar um pedaço do texto de “Úlulu”.  Escrito assim: “E ainda que o nosso mundo já tenha acabado ou esteja a acabar, as crianças dormem aconchegadas nas costas de anciãs, e respiram num ritual, o mais profundo ritual que não se repete. Cada inspiração é única, cada inspiração é diferente, cada dia é um dia”.

A mensagem, assumidamente positiva – porque também importa esperançar e celebrar – é indissociável da vida que a compõe.

“Há aqui um lugar muito familiar. O meu companheiro faz apoio à criação. A minha mãe está em cena, o meu bebé está em todo o lado. Então, não é um espectáculo separado da vida, se é que isso é sequer possível”.

Certa da “impossibilidade de dissociar” a sua existência da performance, Raquel considera que é justamente isso que a peça tem de decolonial.

“A Tobi [Ayé], a nossa consultora de cosmovisão indígena, explica isso melhor do que qualquer pessoa. Ela disse: ‘Raquel, receberes a tua mãe em palco é, em si mesmo, um ritual’. Eu acho que esse ritual tinha de acontecer, que é o ritual de a minha mãe entender-se como mãe, eu entender-me como filha, e falarmos sobre isso. De eu pedir-lhe essa bênção. Isso foi uma chave durante este processo criativo. Mudou tudo”.

Entre curas, traumas, colapso, plantação, colheita, regeneração e celebração, a criadora de “Úlulu” recorda-nos também que o processo de descolonização das mentes é longo.

“Não dá para adormecer. Aliás, eu acho que o colonialismo é esse estado de sono, esse lado de sonolência”. Pelo contrário, sublinha Raquel,“o movimento decolonial é estar constantemente desperto e constantemente a despertar”.

 “Úlulu” abana-nos nessa direcção, ao mesmo tempo que se propõe encaminhar-nos para um lugar da poesia: “De se dizer uma frase que pode ser interpretada de várias formas, mas que acima de tudo tem de ser sentida”. Em conexão connosco, em relação com as outras pessoas, e na ligação ao Planeta.

Maria Palmira Joaquim, fotografada por Pedro Jafuno

Direcção artística e criação
Raquel Lima

Interpretação
Maria Palmira Joaquim, Okan Kayma, Raquel Lima

Cenografia
Eneida Tavares

Desenho de luz
Lui L’Abbate

Figurinos
Neusa Trovoada

Sonoplastia e composição original
Okan Kayma

Vídeo / filmagens
Sara Morais

Movimento
Lucília Raimundo

Consultora de cosmovisão indígena
Tobi Ayé

Apoio à criação
Danilo Lopes

Vozes

Ana Maria Semedo, Elcínia Dias, Eliane Borges, Eneida Tavares, Ernestina Miranda, Marilene de Andrade, Tobi Ayé

Olhar externo

Dori Nigro

Produção

Joana Costa Santos

Administração

Agência 25

Coprodução

Teatro do Bairro Alto, Teatro Municipal do Porto / FITEI

Coprodução em residência

OSSO, Alkantara, O Espaço do Tempo

Apoio

República Portuguesa – Cultura / DGARTES – Direção-Geral das Artes, Câmara Municipal de Lisboa / Polo Cultural das Gaivotas, Culturgest, Rural Vivo, Santos & Monteiro


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Dos saberes do arroz africano à libertação das memórias, Zia Soares revela-nos um outro mundo

Titulada em crioulo guineense, a peça “Arus Femia” – que em português significa “Arroz Fêmea” –, estreia-se esta semana no Teatro do Campo Alegre, no Porto, com duas sessões. A primeira está marcada para sexta-feira, 21, às 19h30, seguindo-se outra no sábado, 22, às 21h30. Neste dia, as reflexões desembrulhadas em palco estendem-se ao programa da Conferência “Arroz Africano no Mundo Atlântico”, que acontece a partir das 14h30, no Rivoli.

Ia e regressava de Bissau, sem outro plano a não ser trabalhar nos campos de arroz. “Interessava-me saber como é que se planta”, conta Zia Soares, que, durante quatro anos, desdobrou viagens à Guiné e, com elas, viu germinar a sua mais recente criação: “Arus Femia”. Presente no ensaio de imprensa, realizado no Espaço da Penha, em Lisboa, o Afrolink conversou com a encenadora e actriz sobre esta produção, que “desarruma” os nossos olhares, escutares e falares. “É sobre isto que este espectáculo trabalha: a criação de um outro mundo, de uma outra língua, de outras perspectivas”.  Titulada em crioulo guineense, a peça – que em português significa “Arroz Fêmea” –, estreia-se esta semana no Teatro Campo Alegre, no Porto, com duas sessões. A primeira está marcada para sexta-feira, 21, às 19h30, seguindo-se outra no sábado, 22, às 21h30. Neste dia, as reflexões desembrulhadas em palco estendem-se ao programa da Conferência “Arroz Africano no Mundo Atlântico”, que acontece a partir das 14h30, no Rivoli. “Para além da obra artística, esta é uma discussão para a sociedade civil”, sublinha Zia Soares, que, de inquietação em criação, encontra novas chaves de leitura do mundo. Desta vez, os questionamentos atravessam a história do arroz africano no mundo Atlântico. “Como uma espécie domesticada de forma independente na África Ocidental há mais de três mil anos chegou às plantações do Novo Mundo? Que protagonismo tiveram as mulheres escravizadas no estabelecimento deste alimento africano vital nas Américas?”. Do palco para a conferência, libertam-se memórias.

Fotos de Arlindo Camacho (também de capa), aqui com elenco do espectáculo “Arus Femia”, que inclui elementos do grupo cultural da Guiné-Bissau, Netos de Bandim

Sem uma única palavra, o diálogo constrói-se de silêncios e gestos, num serpentear de corpos e expressar de pés. Com eles desponta um movimento comum, tão harmonioso quanto misterioso.

“O que é isto? Quem és tu? O que é que tu queres? Não dizes nada?”.

Há uma estranheza neste encontro-confronto que nos prende a atenção, desarruma pensamentos, e marca os primeiros minutos de “Arus Femia”, a mais recente criação de Zia Soares.

“Nós estamos habituados a muito ruído, de todo o tipo, tanto sonoro como visual. E este espectáculo traz outra perspectiva. Há uma possibilidade de mundo no silêncio”, introduz a encenadora e actriz, propondo novos olhares, escutares e falares.

“Na expressão europeia, euro-centrada, as palavras, o que se diz e aquilo que se escreve têm uma hegemonia sobre tudo o resto”, nota a criadora, interessada em conhecer – e dar a conhecer – outros modos de comunicar.

“O silêncio não é uma incapacidade de expressão. Não é uma assombração, e sim um assombramento, uma forma de expressão completamente diferente, que nos diz que há um outro entendimento possível que desconhecemos”.

Mais do que teorizar sobre alternativas de ser e de estar, Zia faz por vivê-las.

Foi assim que, durante quatro anos, desdobrou viagens à Guiné-Bissau, sem outro plano a não ser trabalhar nos campos de arroz: “Interessava-me saber como é que se planta”.

O processo, construído na ligação a, e com outras mulheres e comunidade, acabou por produzir “Arus Femia”, espectáculo titulado em crioulo guineense, e que, em português, significa “Arroz Fêmea”.

“Há um entendimento maior que me acompanha: de que há muitas coisas que tenho de saber, que tenho de descobrir, que tenho de escavar, e em que tenho de mergulhar. Essa é a certeza que tenho, mas aquilo que vou encontrar quando mergulho é desconhecido também para mim”.

Não surpreende, por isso, que a experiência nos arrozais tenha acontecido desligada de programações artísticas, guiada por essa ânsia de conhecer, espicaçada por conversas e leituras sobre o contributo africano para a globalização do consumo do arroz.

“Como uma espécie domesticada de forma independente na África Ocidental há mais de três mil anos chegou às plantações do Novo Mundo? Que protagonismo tiveram as mulheres escravizadas no estabelecimento deste alimento africano vital nas Américas?”.

O palco em discussão

A proposta de reflexão, presente na Conferência “Arroz Africano no Mundo Atlântico”, prolonga a acção de “Arus Femia”, que se estreia esta semana no Teatro Campo Alegre, no Porto, com duas sessões.

A primeira está marcada para sexta-feira, 21, às 19h30, seguindo-se outra no sábado, 22, às 21h30, dia em que a apresentação é antecedida, a partir das 14h30, no Rivoli, por essa Conferência.

“Para além da obra artística, esta é uma discussão para a sociedade civil”, sublinha Zia Soares, que, de inquietação em criação, encontra novas chaves de leitura do mundo, neste caso apontadas para reflectir sobre soberania alimentar, crise climática, migrações e feminismo. Sem quaisquer pressões de entendimentos, garante a criadora.

“Não me sinto responsável pela forma como o público vai receber e interpretar o espectáculo. A mim cabe-me ter coisas que me impactam e inquietam, e que eu traduzo artisticamente”, revela Zia, interessada em estimular a reflexão de quem assiste, seja ela qual for.

Depois do Porto, a proposta segue para Lisboa, apresentando-se, a 2 de Abril, no CAM – Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, com entrada gratuita.

Ainda na capital, o Teatro do Bairro vai acolher cinco dias da produção, de 7 a 11 de Maio, mês que encerra com a presença do espectáculo na primeira Bienal da Guiné-Bissau.

Entre os palcos e a conferência, libertam-se memórias.

“A maioria das pessoas identifica a escravidão com o açúcar e poucas a associam ao arroz”, assinala-se na sinopse da conferência, recordando-se que os africanos escravizados cultivavam o cereal no estuário do Sado, em Portugal, no Brasil, nas Caraíbas e no sul dos Estados Unidos.

Este e outros saberes inspiraram “Arus Femia”, que, no entanto, se solta de cronologias e geografias. “É sobre isto que este espectáculo trabalha: a criação de um outro mundo, de uma outra língua, de outras perspectivas”, reflecte a autora, sublinhando a natureza não exclusivamente humana das personagens.

“Vemos em palco uma comunidade para além de qualquer tempo, em que as memórias não se fixam, estão sempre a circular, como acontece com a natureza, que não está presa, que se vai reconfigurando e se vai transformando”.

Pelo contrário, nota Zia, “nesta nossa forma de vida, estamos a acumular memórias, e como não sabemos o que fazer com elas, isso traz-nos muitas dores”.

Será a Dormência, nome de uma das sete personagens de “Arus Femia”, um modo de resistir à dor das memórias?

Será, como sugere outra personagem, que é preciso afundar, para lembrar? Ou então, lembrar para depois esquecer?

Entre os nossos próprios questionamentos, e aqueles que o espectáculo verbaliza, persiste a certeza de que um outro mundo está ao nosso alcance.

Com “coisas que nós não conseguimos ver, ouvir, nem olhar quando temos tanto ruído à nossa volta”.  

Zia Soares, foto de Sofia Berberan

Direcção, encenação, texto
Zia Soares

Interpretação
Albertinho Monteiro, Aoaní, Dionezia Cá, Izária Sá, Ulé Baldé, Urbício Vieira, Xullaji

Música
Xullaji

Movimento coreográfico
Vânia Doutel Vaz

Cenografia
Neusa Trovoada

Design de iluminação
Carolina Caramelo

Vídeo
António Castelo, Lentim Nhabaly

Video design
Cláudia Sevivas

Conteúdo visual para animação 2D
Camila Reis, Nú Barreto

Figurinos
Neusa Trovoada

Tranças
Mariana Desidério

Tradução para kriol
Miguel de Barros

Engenheiro de som
Jorge Gonçalves

Direcção de produção
Camila Reis

Apoio à pesquisa
TINIGUENA

Produção
Sowing_arts

Coprodução
Teatro Municipal do Porto, Netos de Bandim, STATION service for contemporary dance

Apoio
Câmara Municipal de Lagos/Centro Cultural de Lagos, Casa da Dança, Fundação Calouste Gulbenkian, GROWTH, Largo Residências/Jardins da Bombarda, O Rumo do Fumo, Polo Cultural Gaivotas Boavista, RDP África

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Com quantas músicas se compõe a Paz? Juliata Cohen canta-nos

Nasceu em França, há 32 anos, com Marrocos e Tunísia no sangue, e cresceu sob a inspiração de múltiplas influências culturais, desde cedo alargadas a viagens frequentes a Israel. Já adulta, Juliata Cohen encontrou em Jerusalém um bastião de entendimentos humanos, de onde partiu para seguir um apelo de alma, pronunciado numa língua que desconhecia, mas admirava: o bambara. Encontrou o idioma nas vozes de artistas como Fatoumata Diawara, Amadou & Mariam ou Oumou Sangaré, e, por dois anos, fez dele ‘morada’, entre viagens pelo Mali e o Burkina Faso. Já com algum vocabulário em bambara, seguiu para Cabo Verde, destino de um novo impulso musical, entretanto adoptado como casa e laboratório de experiências, traduzidas em “22:22”, o seu álbum de estreia. Lançado a 22 de Janeiro, o trabalho conta com os contributos de duas referências da música cabo-verdiana – Djô da Silva e Mario Lucio –, e, por estes dias, está a ser apresentado em Portugal. Amanhã, 8, Juliata sobe ao palco do Wow, no Porto, e no sábado seguinte, 15, podemos ouvi-la na Fábrica Braço de Prata, em Lisboa. Até lá, fique a conhecer um pouco mais da sua história, que também passa pelo artesanato.

Nasceu em França, há 32 anos, com Marrocos e Tunísia no sangue, e cresceu sob a inspiração de múltiplas influências culturais, desde cedo alargadas a viagens frequentes a Israel. Já adulta, Juliata Cohen encontrou em Jerusalém um bastião de entendimentos humanos, de onde partiu para seguir um apelo de alma, pronunciado numa língua que desconhecia, mas admirava: o bambara. Encontrou o idioma nas vozes de artistas como Fatoumata Diawara, Amadou & Mariam ou Oumou Sangaré, e, por dois anos, fez dele ‘morada’, entre viagens pelo Mali e o Burkina Faso. Já com algum vocabulário em bambara, seguiu para Cabo Verde, destino de um novo impulso musical, entretanto adoptado como casa e laboratório de experiências, traduzidas em “22:22”, o seu álbum de estreia. Lançado a 22 de Janeiro, o trabalho conta com os contributos de duas referências da música cabo-verdiana – Djô da Silva e Mario Lucio –, e, por estes dias, está a ser apresentado em Portugal. Amanhã, 8, Juliata sobe ao palco do Wow, no Porto, e no sábado seguinte, 15, podemos ouvi-la na Fábrica Braço de Prata, em Lisboa. Até lá, fique a conhecer um pouco mais da sua história, que também passa pelo artesanato.

Sem conhecer uma única palavra da língua, Juliata Cohen agarrou no sentimento, e soltou a voz no crioulo de Cabo Verde, para interpretar o tema “Tan Kalakatan”.

“Estava apaixonada pela música”, conta ao Afrolink, revisitando o primeiro contacto com Carlos Alberto Sousa Mendes, mais conhecido por Princezito.

Na altura ainda a viver em Israel, a artista conta que para além de ser ter entusiasmado a gravar a canção que o cabo-verdiano compôs para Mayra Andrade, decidiu partilhar com ele o resultado.

“Procurei o contacto no Facebook, e escrevi a dizer: sou fã do seu trabalho, aqui está uma versão da sua música”.

A mensagem abriu espaço a uma conversa, e, de repente, o arquipélago africano ficou mais perto.

“Ligou-me porque estava espantado que conseguisse cantar em crioulo. Ficou super surpreendido, e acabámos a falar ao telefone 30 minutos, em francês e inglês, tudo misturado. Quando disse que tinha o sonho de ir para Cabo Verde, respondeu logo que seria bem-vinda”.

Hoje Juliata vive na cidade da Praia, fala crioulo, e tem no seu álbum de estreia uma forte identidade cabo-verdiana.

Hora como herança

Intitulado “22:22”, o disco foi produzido pelo renomado Mario Lucio, e com o selo de qualidade da editora Harmonia/LusAfrica, de Djô da Silva, mundialmente reconhecido pela ligação a Cesária Évora.

“22:22 é uma ‘hora-espelho’, uma boa hora para rezar, e também um bom momento de alinhamento, de sincronicidade”.

O significado, explica a cantautora, reflecte parte da sua herança familiar. “Trago isso da minha avó materna, e utilizo essa hora quando quero mandar uma reza para o céu ou desejar uma coisa, até para outra pessoa. Sempre foi um momento de conexão, uma coisa forte”.

A dimensão espiritual, presente no título “22:22”, estende-se aos oito temas que integram o álbum, criado, tal como Juliata, sob uma miscelânea de influências.

Nascida em França, há 32 anos, a artista é filha de mãe marroquina e pai tunisino, e cresceu entre Paris e Israel.

“Fui pela primeira vez aos 8 anos, para um casamento, e depois passei a ir todos os anos para festas tradicionais. Às vezes ficava duas semanas, outras dois meses no Verão”.

O destino, que durante a infância e adolescência permitia o encontro com a família do lado paterno, tornou-se residência, já em idade adulta, durante cerca de dois anos e meio.

“Já estava acostumada aos meus familiares, mas nunca tinha vivido no Médio Oriente. Aí tive a sorte de descobrir um lado que talvez poucos conhecem, porque estava no meio de um lugar de multiculturalidade, com pessoas de todas as religiões, com tolerância, aceitação e paz”.

Dessa temporada, de descoberta de Jerusalém, Juliata guarda as melhores lembranças.

“É um lugar muito sagrado, que tem uma energia única no mundo, e é muito raro ouvir falar sobre isso. Ouvimos falar muito mais sobre a guerra sem fim, que continua até hoje, mas é importante pôr luz nesse outro lado que também faz parte da vida lá”.

Música de Paz

Determinada em contribuir para essa ‘iluminação’ de perspectivas – para que o mundo não veja apenas a separação das pessoas e os problemas –, a cantora usa a arte para quebrar fronteiras, aplicando mais uma dimensão do legado familiar.

“Tenho esta vontade de misturar línguas, por isso às vezes canto em árabe e hebraico ao mesmo tempo”, assinala, sublinhando o poder desse cruzamento: “É um símbolo de Paz, uma forma de conservar a minha herança judaica e árabe”.

Além da inspiração das próprias raízes, desde cedo Juliata se sentiu fascina por outras maneiras de pensar, e por outras culturas. O interesse, revela, foi sendo musicalmente alimentado a partir da colecção de discos de um tio DJ.

“Ele tinha o hábito de escutar música africana, de Angola, Cabo Verde, Marrocos, Etiópia, e também do Brasil. Tinha 10 anos quando ele me dizia: ‘Não, não, não vais ouvir Britney Spears. Vem cá, e ouve Stevie Wonders, Ray Charles…”.

O exemplo fez escola, e reforçou a veia artística da cantora, desde cedo encaminhada pela família para a música, o teatro e a dança.

“Estamos habituados a adaptar e a misturar. Foi sempre parte da minha educação respeitar todo o mundo com sua cultura, religião, forma de viver. Acho que por isso sempre tive uma grande vontade de viajar, de ir ainda para mais longe do que as viagens que a minha família, de alguma forma, me foi proporcionando”.

Encontros de línguas

Um dos impulsos para percorrer mundo continua a ser a música, mesmo que cantada em idiomas desconhecidos.

“Eu tinha uma conexão muito grande com a língua bambara, falada nuns oito países da Costa de África, então sempre quis aprender”.

O fascínio, que foi crescendo a partir das vozes de artistas como Fatoumata Diawara, Amadou & Mariam ou Oumou Sangaré acabou por fixá-la durante dois anos na rota Mali-Burkina Faso.

“No Burkina, no início, o primeiro contacto que tinha era de um baixista, muito profissional. Todo o mundo estava a recomendar esta conexão. Depois começámos um projecto e, com tempo, paciência e experiência conheci outros artistas”.

Sempre na espontaneidade de cada encontro, e com abertura para novas ligações, o mapa de Juliata estendeu-se a Cabo Verde, destino cumprido já com algum vocabulário em bambara na bagagem, e o contacto de Princezito nas ligações.

“A minha música é um encontro de países, línguas e culturas”, diz em português, um dos cinco idiomas que fala, embora consiga cantar em sete. Mais do que “falar certinho”, a autora de “22:22” preocupa-se em comunicar.

Com o mesmo engenho criativo, a artista produz colares, brincos e pulseiras, que vende pelas ruas de Cabo Verde, também como expressão da sua ‘missão’ conciliadora.

“Faz parte de mim. Tanto para o processo de criar uma jóia, como para o processo de criar uma música, gosto de misturar influências, por exemplo juntar uma pedra de Marrocos, com um búzio de Cabo Verde, e com isso ter uma história que junta culturas e países. É o mesmo que faço com a música. É um ponto de encontro, um ponto de unir as culturas, as línguas, os povos, as histórias”.

 A proposta sobe ao palco do Wow, quarteirão cultural no Porto, amanhã, 8, às 22h30, enquanto no sábado seguinte, 15, podemos ouvi-la na Fábrica Braço de Prata, em Lisboa, às 23h30.

Depois, a agenda de divulgação de “22:22”, que apresenta como uma proposta afro-árabe soul, passa por Cabo Verde e França. Mais para a frente, ainda sem calendarização, a artista planeia uma imersão nos ritmos brasileiros.

Mas, vá para onde for, pode sempre acompanhá-la e ouvi-la nas plataformas digitais.

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A vida de Georgina Ribas deu esta obra de arte, e isso vê-se no Brooklyn

A “Gala Black History Month”, organizada pela Embaixada do Canadá em Portugal, em parceria com a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) e também com a Câmara Municipal de Lisboa, homenageou, no passado dia 19 de Fevereiro, quatro personalidades que marcaram e continuam a marcar a História Negra em Portugal. A atleta Naide Gomes e o músico Tito Paris subiram ao palco para receber as suas distinções, a que se juntaram mais duas, atribuídas a título póstumo: coube a um dos filhos de Johnson Semedo receber o tributo ao pai, enquanto a homenagem a Georgina Ribas foi confiada à rede Afrolink.

A “Gala Black History Month”, organizada pela Embaixada do Canadá em Portugal, em parceria com a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) e também com a Câmara Municipal de Lisboa, homenageou, no passado dia 19 de Fevereiro, quatro personalidades que marcaram e continuam a marcar a História Negra em Portugal. A atleta Naide Gomes e o músico Tito Paris subiram ao palco para receber as suas distinções, a que se juntaram mais duas, atribuídas a título póstumo: coube a um dos filhos de Johnson Semedo receber o tributo ao pai, enquanto a homenagem a Georgina Ribas foi confiada à rede Afrolink.

Entrega da obra de Brian Amadi, de homenagem a Georgina Ribas, a Carlos Lopes e Claúdia Oliveira, nossos anfitriões de muitos e bons momentos no Brooklyn

Pelo segundo ano consecutivo, a Embaixada do Canadá em Portugal realizou a “Gala de Homenagem do Black History Month em Lisboa”, de tributo à presença negra no país, através do reconhecimento de personalidades que se destacaram e continuam a destacar na história portuguesa.

Uma das individualidades distinguidas a título póstumo, no passado dia 19 de Fevereiro, foi a musicóloga Georgina Ribas, figura ímpar do feminismo negro no país, ainda pouco conhecida – e até desconhecida por muitos.

Para realçar o inestimável contributo da pioneira professora de música, a Embaixada do Canadá convidou o artista multidisciplinar Brian Amadi a imortalizá-la em quadro, desafio criativo que agora pode ser apreciado em Lisboa.

Apresentada na noite da Gala, a obra de arte foi entregue à rede Afrolink, enquanto iniciativa que, desde a primeira palavra publicada, assume o propósito de visibilizar vidas e projectos de pessoas negras em Portugal. Com este compromisso, o quadro que celebra o legado de Georgina Ribas foi oferecido ao Brooklyn, situado na Praça da Alegria. Mais do que um restaurante, o Brooklyn é um pólo de cultura, onde a presença negra ocupa lugar de destaque. Não apenas nas paredes, vestidas de referências da nossa História, mas também no menu, onde se pode saborear um pouco de Cabo Verde, e ainda na programação de eventos, sempre aberta à promoção e elevação da comunidade negra.

Foi no Brooklyn que aconteceu, por exemplo, a primeira gravação ao vivo d’ O Tal Podcast, e é também neste espaço que, todas as últimas quintas-feiras do mês, o humor sobe ao palco com o Brooklyn Comedy Club, que tem como host o comediante Carlos Pereira.

Agora a casa fica ainda mais completa e nossa com a chegada de Georgina Ribas. Celebramos, celebramo-la, e celebramo-nos, aproveitando o momento para recordar a sua história.

O pouco que sabemos sobre Georgina Ribas é o suficiente para percebermos que deveríamos saber muito mais. Mas, tal como acontece com a generalidade das personalidades negras que marcaram a sociedade portuguesa, os seus méritos surgem dispersos, muitas vezes como notas de rodapé em listas de créditos alheios.

É assim que encontramos o seu nome associado à obra do violinista, maestro, arranjador e compositor Lopes da Costa, e à história de Luís de Oliveira Guimarães, fundador e primeiro presidente da Sociedade Portuguesa de Autores.

A ligação de Georgina a Lopes da Costa surge em “Vista Alegre”, obra produzida para o teatro de revista (Teatro do Ginásio, em 1934) que ajudou a compor.

Já com Luís de Oliveira Guimarães, a parceria da angolana encontra-se nos créditos musicais da peça “Corridinho”.

 Não fossem as referências ‘escavadas’ por intelectuais africanos, como Mário Pinto de Andrade, e estudiosos da presença africana em Portugal, como Cristina Roldão, José Pereira e Pedro Varela – co-organizadores da exposição “Para uma história do movimento negro em Portugal, 1911-1933”, apresentada no ano passado – e, provavelmente, não teríamos nada mais a acrescentar. Felizmente, temos.

 “Grande influência social e moral junto da intelectualidade africana”

Num artigo publicado em 2014 no Jornal de Angola, Filipe Zau, doutorado em Ciências da Educação e mestre em Relações Interculturais, lembrou o papel da sua conterrânea nos primórdios do associativismo de Angola.

Recuando à génese do Grémio Africano, Filipe Zau recorda que a estrutura – cujos estatutos foram aprovados “pelo Governo Civil de Lisboa, a 28 de Agosto de 1929” – “tinha como principais objectivos ‘concorrer para o prestígio social e mental dos africanos; congregar e estreitar os laços de uma união e solidariedade entre naturais d’África e as raças nacionais; promover o levantamento do nível intelectual e revigoramento físico dos indígenas da África Portuguesa”.

O especialista adianta que, segundo Mário Pinto de Andrade, “nesta associação [do Grémio Africano] distinguiu-se Dona Georgina Ribas, notável musicóloga feminista, que exerceu grande influência social e moral junto da intelectualidade africana então residente na capital portuguesa”.

Nascida em Angola, em 1882, a pianista chegou a Portugal com três anos, tendo-se formado no Conservatório Nacional de Lisboa. Foi também professora de música num espaço no Rossio.

Cristina Roldão, em texto assinado no "Público", adianta igualmente, citando o periódico "A Voz D’Africa", que, em 1929, Georgina estaria "envolvida na direcção da Liga das Mulheres Africanas, organização sobre a qual pouco mais sabemos do que ter feito parte do Partido Nacional Africano”. Hoje, quase 75 anos depois da morte de Georgina, queremos e merecemos saber mais.

Na Gala Black History Month, que decorreu no passado dia 19 de Fevereiro, no Capitólio, em Lisboa

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Quem tem medo de criminalizar o racismo? Até tu, aliado?

Protestam nas ruas, sempre com o hashtag do momento a tiracolo para poses instagramáveis. Ocupam o espaço mediático com tiradas de eloquência, demasiadas vezes confundidas com originalidades de pensamento. Não perdem uma ocasião para falar de como se integram na vida dos “bairros” – apadrinhados por cachupa e amadrinhados por batukadeiras –, nem se coíbem de usar as vidas negras que observam para teorizar sobre o que (lhes) faz falta. Dizem-se aliados da luta anti-racista, mas revelam-se uns apaniguados do sistema, quando as pessoas pelas quais dizem marchar, e com quais se orgulham de ‘misturar’, ousam pensar e expressar entendimentos diversos – e até contrários – dos seus.  Só assim se explica que, em vez de apoiarem a Iniciativa Legislativa Cidadã para criminalizar o racismo, a xenofobia e de todas as práticas discriminatórias, os pretensos aliados prefiram invocar objecções, colocando-se acima das pessoas que sofrem a violência racista e a vêem escapar impune. Como quem sabe sempre mais. Só que não!

Protestam nas ruas, sempre com o hashtag do momento a tiracolo para poses instagramáveis. Ocupam o espaço mediático com tiradas de eloquência, demasiadas vezes confundidas com originalidades de pensamento. Não perdem uma ocasião para falar de como se integram na vida dos “bairros” – apadrinhados por cachupa e amadrinhados por batukadeiras –, nem se coíbem de usar as vidas negras que observam para teorizar sobre o que (lhes) faz falta. Dizem-se aliados da luta anti-racista, mas revelam-se uns apaniguados do sistema, quando as pessoas pelas quais dizem marchar, e com as quais se orgulham de ‘misturar’, ousam pensar e expressar entendimentos diversos – e até contrários – dos seus.  Só assim se explica que, em vez de apoiarem a Iniciativa Legislativa Cidadã para criminalizar o racismo, a xenofobia e de todas as práticas discriminatórias, os pretensos aliados prefiram invocar objecções, colocando-se acima das pessoas que sofrem a violência racista e a vêem escapar impune. Como quem sabe sempre mais. Só que não!

Olho para os números que, no início desta semana, me diziam que desde 10 de Dezembro de 2024 – data de formalização da proposta –, cerca de 2.700 pessoas assinaram online a Iniciativa Legislativa Cidadã que prevê a alteração do Código Penal, para que se criminalize o racismo, a xenofobia e de todas as práticas discriminatórias.

Comparo os dados com as largas dezenas de milhares de pessoas que, no passado dia 11 de Janeiro, saíram à rua para combater o racismo e a xenofobia, sob o mote “Não nos encostem à parede”.  Junto os cerca de 6.000 seguidores desta campanha no Instagram, e constato o óbvio: há uma linha demasiado ténue que separa um aliado da luta anti-racista de um apaniguado do sistema racista. 

Só assim se explica que, em vez de apoiarem a Iniciativa Legislativa Cidadã para criminalizar o racismo, os pretensos aliados prefiram invocar objecções, colocando-se acima das pessoas que sofrem a violência racista e, repetidamente, a vêem escapar impune.

Importa, por isso, lembrar – uma vez mais e sempre – o papel de um aliado, à luz do que definiu a afroamericana Kayla Reed, pessoa negra e queer, estratega do Movimento pelas Vidas Negras, a partir do qual co-fundou o Projecto pela Justiça Eleitoral.

Desconstruindo a palavra inglesa ally (aliado) letra a letra, a activista aponta quatro acções fundamentais para quem ocupa esse lugar. 

Passo a enumerar, e a traduzir:

A - always center the impacted – focar sempre naqueles que sofrem o racismo na pele;

L - listen & learn from those who live in the oppression – ouvir e aprender com aqueles que vivem sob a opressão;

L - leverage your privilegie – colocar o próprio privilégio/poder ao serviço da luta;

Y - yield the floor – ceder o ‘palco’.

Entre “Setenta e Quatro”, “Gerador”, “DN” e “Brasil Já”, publicações onde fui e vou assinando opinião, perdi a conta ao número de vezes em que escrevi sobre pessoas que se afirmam aliadas da luta anti-racista, mas estão sempre voltadas para si próprias; não conseguem ouvir sem retorquir um ‘mas’ e perceber que, por mais empáticas que possam ser, e por muito que sofram discriminações, nomeadamente de género, nunca vão saber o que é estar na pele de uma pessoa negra. Nunca. Da mesma forma, não preciso dos dedos das duas mãos para contar o número de pessoas brancas com quem me cruzei que usam da influência que têm para criar acessos efectivos e quebrar barreiras estruturais.

Cabe aqui fazer uma dupla ressalva: uma coisa é abrir a porta a pessoas negras, outra muito diferente é construir espaços que as acolham. Do mesmo modo, convém prestar atenção ao papel que, quando são ‘integradas’ em estruturas brancas, as pessoas negras ocupam. É-nos reconhecido o direito de pensar e de opinar, quando ele coloca em causa o pensamento e opinião brancos?  

A menos que acreditem na ficção do racismo reverso, percebam que pessoas brancas nunca saberão o que é ser alvo de racismo, da mesma forma que pessoas que não menstruam nunca saberão o que são dores menstruais, e pessoas que não engravidam nunca saberão o que é passar por um aborto.

Convém, por isso, ouvir e aprender com quem vive essas realidades, e perceber algo fundamental: se as pessoas que vivem as opressões apontam o caminho para as combater, a única coisa que quem não as vive e se diz aliado tem de fazer é apoiar e seguir sob o seu comando.

É vital entender que as dúvidas e questionamentos individuais – por mais legítimos que sejam – não se podem sobrepor a lutas colectivas que combatem violações de Direitos Humanos, e legislam contra a sua impunidade.

A iniciativa cidadã para criminalizar práticas racistas parte do Grupo de Ação Conjunta Contra o Racismo e a Xenofobia, que reúne mais de 80 colectivos “determinados a lutar por um Portugal, uma Europa e um mundo mais inclusivos e interculturais, contra todas as opressões e formas de discriminação”.

Travar o avanço desta proposta é compactuar com o sistema de impunidade, porque sabemos que os casos de racismo raramente são punidos, e, que quando o são, poucas vezes vão além do pagamento de coimas.

Recusar assinar a Iniciativa Legislativa Cidadã de criminalização do racismo não é uma expressão de divergência, é um acto racista.

Porque, conforme explicam ao Afrolink os juristas Anizabela Amaral e Nuno Silva, o que a proposta de alteração ao Código Penal permite é agravar as consequências de práticas já previstas na Lei, para que, por exemplo, agredir pessoas negras– como fez a jornaleira Tânia Laranjo em 2019 com Joacine Katar Moreira e Mamadou Ba –, não seja equiparado à colocação incorrecta de um toldo numa esplanada.

Ignorar que as normas existentes promovem uma cultura de impunidade é próprio de racistas, e de quem não está a focar em quem sofre o racismo na pele. E isso não se resolve com hashtags no Instagram, frases eloquentes, nem rodadas de cachupa.

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