HISTÓRIAS
Dança, canta, partilha vivência ancestral, segue para o Sacerdócio no Candomblé e dá-se a ouvir na Gulbenkian – ela é Nara Couto
Nascida no bairro baiano do Curuzu, que apresenta como o “mais negro fora de África”, Nara Couto fez carreira como bailarina antes de soltar a voz nos palcos. No próximo sábado, 5 de Julho, é dia de a ouvirmos e aplaudirmos no Jardim de Verão da Gulbenkian, onde actua às 17h. A entrada é livre, mediante levantamento de bilhetes.
Nascida no bairro baiano do Curuzu, que apresenta como o “mais negro fora de África”, Nara Couto viveu na Bahia de origem até aos 11 anos, idade em que se mudou para a Suíça, destino de fixação materna. No regresso a casa, o Balé Floclórico da Bahia fincou-lhe as raízes no palco. “Comecei a dançar aos 17 anos. Então, fiquei no Brasil para construir minha carreira”, conta ao Afrolink. Filha do coreógrafo e director artístico Zebrinha, Nara aprendeu a arte da dança com o pai, e já depois de actuações em salas de todo o mundo como bailarina, aventurou-se na música. Primeiro enquanto backing vocal de figuras como Gilberto Gil, Margareth Menezes, Ivete Sangalo e Daniela Mercury, e desde 2017 em nome próprio, numa assinatura construída sob o impulso criativo de Sara Tavares, a artista está a promover o segundo álbum, intitulado “Orí”. Antes, gravou o single “Linda e Preta” – transformado numa “música de impulsionamento da auto-estima de mulheres negras” –, e lançou o projecto “Outras Áfricas”, onde se afirma como “diplomata cultural”. Agora a caminho do Sacerdócio no Candomblé, a artista, criadora da oficina de movimento “Vivência Ancestral”, vê nesta religião uma forma de preservação da presença de África no Brasil. “O Candomblé é um lugar de resistência muito grande”. No próximo sábado, 5 de Julho, é dia de a ouvirmos e aplaudirmos no Jardim de Verão da Gulbenkian, onde actua às 17h. A entrada é livre, mediante levantamento de bilhetes. Vamos!
Num barco no meio do mar, entre espectáculos por Portugal, Nara Couto encontrou em Sara Tavares o balanço que, até hoje, marca a sua identidade musical.
“Eu disse: é isso! Estou conectada. Foi a primeira vez que ouvi Balancê, e mexeu muito comigo”.
Mergulhada na voz e composição de Sara, Nara fez dela assinatura, e letra a letra, dá-nos a escutá-la no próximo sábado, 5 de Julho, às 17h, no Jardim de Verão da Gulbenkian.
A caminho do concerto, o Afrolink foi conhecer mais sobre a artista, que firmou carreira como bailarina, antes de soltar a voz como cantora.
“As pessoas achavam que eu tinha que cantar um pouco mais forte, mas eu tinha a Sara Tavares como referência. E a Sara cantava sobre amor e sobre a leveza”.
Ainda a refazer-se da dor da perda da cantautora – que teve a oportunidade de ver actuar num concerto em Cabo Verde –, Nara conta como encontrar a voz de Sara, falecida em 2023, a inspirou a querer conhecer mais.
“África chegou até mim porque eu pesquisava muito. E quando comecei nessa busca, a minha referência foi a Sara Tavares, inclusive para a capa de um disco”.
Entretanto embalada também por outras músicas de criação africana, a baiana partilha múltiplas inspirações.
“Em Cabo Verde, eu comecei a ouvir os Tubarões e o Gil Semedo”, assinala, antes de revelar uma companhia de todos os dias.
“Sou muito fã do Paulo Flores – o tio Paulo –, que eu oiço sempre, e com quem tenho contacto”.
A ligação, antecipa Nara ao Afrolink, encaminha-se para uma parceria em fase de construção: “Estamos a conversar sobre projectos futuros”.
Da Bahia para “Outras Áfricas”
Nascida no bairro baiano do Curuzu, que apresenta como o “mais negro fora de África”, a artista viveu na Bahia de origem até aos 11 anos, idade em que se mudou para a Suíça, destino de fixação materna.
No regresso a casa, o Balé Floclórico da Bahia fincou-lhe as raízes no palco. “Comecei a dançar aos 17 anos. Então, fiquei no Brasil para construir minha carreira”.
Filha do coreógrafo e director artístico Zebrinha, Nara aprendeu a arte da dança com o pai, e foi já depois de actuações em salas de todo o mundo como bailarina, que se aventurou na música.
Primeiro enquanto backing vocal de figuras como Gilberto Gil, Margareth Menezes, Ivete Sangalo e Daniela Mercury, e desde 2017 em nome próprio, a artista está a promover o segundo álbum, intitulado “Orí”.
Antes desta produção, que se vai estender a uma curta-metragem, a baiana gravou o single “Linda e Preta” – transformado numa “música de impulsionamento da auto-estima de mulheres negras” –, e lançou o projecto “Outras Áfricas”, onde se afirma como “diplomata cultural”.
“A intenção é fazer com que a gente realmente faça grandes pontes”, sublinha, depois de uma viagem pela Guiné-Bissau, onde as ligações musicais incluíram um encontro com a Secretária de Estado da Cultura, Nancy Alves Cardoso.
“Imediatamente também escrevi para o Secretário de Cultura do Estado da Bahia para falar: ‘Estou aqui em Guiné-Bissau, estamos conversando e precisamos conversar mais”.
Nara promove e aprofunda esse diálogo a partir do projecto “Outras Áfricas”, que completou uma década em 2024.
A iniciativa, que num primeiro momento foi desenvolvida no Brasil, através do encontro com músicos africanos aí radicados, volta-se agora para os PALOP.
Depois do voo guineense, que teve como anfitrião e parceiro Mû Mbana, a baiana planeia viagens a Cabo Verde e Angola, sempre com ligações de palco e de estúdio.
“Estamos organizando para que todo mês eu possa estar compartilhando uma música com um artista do continente africano”, antecipa Nara, apontando Mû Mbana como o primeiro nessa frente de gravações.
Danças com ancestrais e Sacerdócio no Candomblé
A rota de expressão e projecção musical combina-se sempre com movimento, hoje traduzido, para além dos palcos, no projecto “Vivência Ancestral”.
A proposta, assinala-se na sinopse, recorre a “momentos práticos multireferenciais das culturas negras e da transmissão oral de conhecimento”, para “criar uma experiência significativa que contribua para o bem-estar pessoal e colectivo, bem como para a preservação das tradições ancestrais a partir da dança”.
Já apresentada em Lisboa e no Porto, a vivência, explica Nara, é sobre ela própria “ser um instrumento que transporta uma mensagem que já foi passada pelos mais velhos”. O processo, sublinha, está enraizado na sua vida.
“É dessa forma que eu também adquiro a minha sabedoria, eu sento e converso com os mais velhos, eu leio livros. Eu ouço o vento, eu ouço o silêncio para depois compartilhar”.
Desengane-se, por isso, quem vai em busca de um workshop de dança. Na “Vivência Ancestral”, Nara entrega conexão – de cada pessoa consigo própria, com as suas raízes, com a natureza, com o mundo e a humanidade.
“Estamos todos vivendo nosso céu e nosso inferno ao mesmo tempo. Então, quando eu falo alguma coisa, se for importante, aquela pessoa vai acolher e utilizar no dia-a-dia”.
Comunicadora ancestral, a artista coloca em cada mensagem que partilha a intenção “de que as pessoas fiquem bem e que vivam melhor”.
O propósito encaminha os seus passos para o Sacerdócio no Candomblé, que cultua como uma forma de preservação da presença de África no Brasil.
“A forma como a gente come, tanto as comidas, como os alimentos; a forma como nós cantamos, como nós dançamos, tudo isso que um africano que vai no Brasil vê, reconhece e diz ‘Isso é África’, foi preservado através do Candomblé”.
Muito mais do que uma religião, Nara realça que “o Candomblé é um lugar de resistência muito grande”.
Axé!
Pais de Maria Luemba recordam a filha: “Foi, é, e sempre será o melhor de nós. A luz dela nunca se apagará”
Ladis Baltazar e David Luemba, pais de Maria Luemba, jovem angolana de 17 anos encontrada morta em circunstâncias suspeitas no passado dia 12 de Junho, em Sever de Vouga, Aveiro, recordam a “luz própria” e “alegria contagiante” da filha, num texto em que partilham “O que Maria representava” para ambos. As memórias, lidas na manifestação do último domingo, 29 de Junho, já depois do enterro, realizado na véspera, ouviram-se entre apelos à Justiça. “A forma brutal como a tiraram de nós é uma ferida aberta, profunda”, sublinham, garantindo: “Lutaremos até ao fim para que a verdade apareça, para que os culpados sejam responsabilizados, e para que o nome da Maria nunca seja esquecido”. Firmes, Ladis e David, reiteram: “A justiça será o nosso acto de amor por ela, agora que já não podemos protegê-la com os nossos braços”. Sensibilizados com a solidariedade que têm recebido, os pais de Maria agradecem “todas as manifestações de carinho, solidariedade, apoio e orações”, e notam que “esse calor humano tem sido um abraço invisível”, que os tem sustentado e dado forças para continuar. O Afrolink partilha a carta na íntegra.
Ladis Baltazar e David Luemba, pais de Maria Luemba, jovem angolana de 17 anos encontrada morta em circunstâncias suspeitas no passado dia 12 de Junho, em Sever de Vouga, Aveiro, recordam a “luz própria” e “alegria contagiante” da filha, num texto em que partilham “O que Maria representava” para ambos. As memórias, lidas na manifestação do último domingo, 29 de Junho, já depois do enterro, realizado na véspera, ouviram-se entre apelos à Justiça. “A forma brutal como a tiraram de nós é uma ferida aberta, profunda”, sublinham, garantindo: “Lutaremos até ao fim para que a verdade apareça, para que os culpados sejam responsabilizados, e para que o nome da Maria nunca seja esquecido”. Firmes, Ladis e David, reiteram: “A justiça será o nosso acto de amor por ela, agora que já não podemos protegê-la com os nossos braços”. Sensibilizados com a solidariedade que têm recebido, os pais de Maria agradecem “todas as manifestações de carinho, solidariedade, apoio e orações”, e notam que “esse calor humano tem sido um abraço invisível”, que os tem sustentado e dado forças para continuar. O Afrolink partilha a carta na íntegra.
Manifestação por Justiça para Maria Luemba, realizada no último domingo, 29, em Lisboa
O que Maria representava para nós, seus pais
Falar da Maria é mergulhar num mar de luz, ternura e esperança. Nossa filha foi, e sempre será, um milagre em nossas vidas. Era impossível não notar a sua presença — não apenas por sua beleza exterior, mas pelo brilho que vinha de dentro, uma luz própria, rara, que iluminava tudo ao seu redor. Maria era feita de amor, de sonhos e de uma alegria contagiante que tocava todos que cruzavam seu caminho.
Ela era mais do que nossa filha. Era nossa melhor amiga, nossa confidente, a razão de muitos dos nossos sorrisos e orgulho. Tinha o dom de transformar o ordinário em extraordinário, de fazer com que cada momento com ela fosse uma dádiva. Sempre teve um carinho especial por todos – por nós, seus pais, por seus irmãos, avós, tios, primos, amigos… Maria era dessas almas que sabiam amar e ser amadas.
Com apenas 17 anos, já demonstrava uma maturidade admirável e sonhava alto. Queria conquistar o mundo, não com arrogância, mas com gentileza, humildade e muito trabalho. Era uma jovem cheia de vida, com um futuro brilhante desenhado por Deus e impulsionado pelo seu próprio esforço. E, de forma cruel e brutal, isso tudo lhe foi tirado. Roubado. Interrompido.
Diante de tanta dor, nos faltam palavras que estejam à altura do que Maria foi para nós. Como pais, nos resta apenas o consolo de crer que ela não se foi – ela se transformou. A luz que ela era neste mundo agora brilha como estrela no céu, sentada ao lado do Pai Celestial. E mesmo na ausência, ela continua viva em nós, nas nossas memórias, nos nossos gestos, e no amor que nunca deixará de existir.
Agradecemos, de coração, todas as manifestações de carinho, solidariedade, apoio e orações que temos recebido de familiares, amigos, instituições e até de desconhecidos. Esse calor humano tem sido um abraço invisível que nos sustenta e nos dá forças para seguir.
E agora, com o coração ferido, mas com fé inabalável, aguardamos que a justiça seja feita. Porque Maria merece. Porque todas as Marias merecem viver. E porque a luz dela nunca será esquecida. Nunca.
Maria não era apenas nossa filha, era um sopro de Deus em nossas vidas. Tinha o dom raro de transformar o ambiente com sua presença – bastava um sorriso seu para o dia parecer mais leve, bastava um abraço para todo o peso do mundo desaparecer. Ela tinha esse poder, suave e profundo, de tocar o coração das pessoas sem fazer esforço, apenas sendo quem era: doce, sincera, cheia de graça.
Era uma menina que sonhava com os olhos abertos. Sonhava em crescer, estudar, viajar, ajudar os outros… Sonhava em dar orgulho a seus pais – e como deu! Mesmo com tão pouca idade, Maria deixou um legado de amor, simplicidade, respeito e luz. Era admirada pela sua educação, pela forma como tratava os mais velhos, e pela empatia com os mais frágeis. Não havia arrogância nela, apenas uma bondade genuína e uma alegria transparente, dessas que vêm da alma.
Ela não merecia esse fim. Nenhuma filha merece. A forma brutal como a tiraram de nós é uma ferida aberta, profunda, que clama por justiça. Não apenas por nós, seus pais, mas por tudo o que ela representava – por tudo o que ela ainda poderia ser. Lutaremos até ao fim para que a verdade apareça, para que os culpados sejam responsabilizados, e para que o nome da Maria nunca seja esquecido. A justiça será o nosso ato de amor por ela, agora que já não podemos protegê-la com os nossos braços.
E enquanto esperamos por essa justiça, abraçamos cada gesto de carinho que temos recebido. As mensagens, as orações, os abraços silenciosos, os olhos marejados de tantos que, mesmo sem conhecê-la profundamente, sentiram a dor dessa perda. Obrigado, de coração, a cada um que tem caminhado connosco nessa travessia tão difícil.
Maria agora vive em outro plano, onde não há dor, nem injustiça, nem medo. Vive em Deus. E por mais que nos faltem forças, continuaremos de pé – por ela. Porque se a vida nos tirou Maria do presente, o amor que sentimos por ela nos dará forças para honrá-la todos os dias, com coragem, com dignidade, com memória.
Nossa filha foi, é, e sempre será o melhor de nós. A luz dela nunca se apagará.
Como o ódio racial que matou Ademir Moreno está a ser reduzido a jogos de palavras
Sem a presença de jornalistas na sala de audiências, que deixaram de acompanhar o processo ao ponto de terem ignorado o início do julgamento, o caso do assassinato de Ademir Araújo Moreno, cruelmente agredido em Março de 2024, evidencia como as vidas negras (não) importam nesta sociedade. A desvalorização das agressões que sofremos, ardilosamente transformadas em narrativas que nos demonizam e nos responsabilizam pelos nossos próprios homicídios, tem agora no Tribunal de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, nos Açores, um novo palco. É aqui que a defesa de Adriano Silva Pereira, apontado por inúmeras testemunhas como o assassino de Ademir, tem recorrido a incontáveis “armadilhas” de retórica para eliminar a acusação de “ódio racial”, presente desde os primeiros relatos do crime, cometido à porta de uma discoteca, na ilha do Faial. O jogo de palavras – apurou o Afrolink junto de uma pessoa que assistiu à segunda sessão do julgamento, na passada terça-feira, 17 – cai no absurdo de fazer de um “você” fundamento de absolvição. Para Elísio Lourenço, advogado do arguido, importa apurar se o seu cliente apregoou “Não tenho medo de pretos”, ou “Não tenho medo de vocês, pretos” para determinar se o assassinato teve motivação racial. Falando à imprensa – que apesar de não se ter dado ao trabalho de acompanhar a sessão, apareceu no final para registar declarações –, o jurista confirmou que Adriano Silva Pereira “assumiu ser o causador da morte, porque foi ele que desferiu o soco que veio a revelar-se fatídico”, mas reduziu o acto bárbaro a “uma rivalidade apenas, mais nada”, ainda que “haja componente de se tratar de brancos ou negros”. Não é isso, contudo, que indicam vários testemunhos recolhidos pela acusação, convergentes na descrição do arguido como um racista empedernido. A próxima sessão está marcada para dia 2 de Julho, e, com ela, renasce a esperança de que a Justiça seja feita. “Para mim, ele teria que apanhar no mínimo 20 anos”, considera ao Afrolink Lurdes Ferreira, a viúva de Ademir, que recorda o marido como “uma pessoa carinhosa, amigo do amigo, sempre de bem com a vida”. Morreu por ser negro.
Sem a presença de jornalistas na sala de audiências, que deixaram de acompanhar o processo ao ponto de terem ignorado o início do julgamento, o assassinato de Ademir Araújo Moreno, cruelmente agredido em Março de 2024, evidencia como as vidas negras (não) importam nesta sociedade. A desvalorização das agressões que sofremos, ardilosamente transformadas em narrativas que nos demonizam e nos responsabilizam pelos nossos próprios homicídios, tem agora no Tribunal de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, nos Açores, um novo palco. É aqui que a defesa de Adriano Silva Pereira, apontado por inúmeras testemunhas como o assassino de Ademir, tem recorrido a incontáveis “armadilhas” de retórica para eliminar a acusação de “ódio racial”, presente desde os primeiros relatos do crime, cometido à porta de uma discoteca, na ilha do Faial. O jogo de palavras – apurou o Afrolink junto de uma pessoa que assistiu à segunda sessão do julgamento, na passada terça-feira, 17 – cai no absurdo de fazer de um “você” fundamento de absolvição. Para Elísio Lourenço, advogado do arguido, importa apurar se o seu cliente apregoou “Não tenho medo de pretos”, ou “Não tenho medo de vocês, pretos” para determinar se o assassinato teve motivação racial. Falando à imprensa – que apesar de não se ter dado ao trabalho de acompanhar a sessão, apareceu no final para registar declarações –, o jurista confirmou que Adriano Silva Pereira “assumiu ser o causador da morte, porque foi ele que desferiu o soco que veio a revelar-se fatídico”, mas reduziu o acto bárbaro a “uma rivalidade apenas, mais nada”, ainda que “haja componente de se tratar de brancos ou negros”. Não é isso, contudo, que indicam vários testemunhos recolhidos pela acusação, convergentes na descrição do arguido como um racista empedernido. A próxima sessão está marcada para dia 2 de Julho, e, com ela, renasce a esperança de que a Justiça seja feita. “Para mim, ele teria que apanhar no mínimo 20 anos”, considera ao Afrolink Lurdes Ferreira, a viúva de Ademir, que recorda o marido como “uma pessoa carinhosa, amigo do amigo, sempre de bem com a vida”. Morreu por ser negro.
As demonstrações de ódio racial de Adriano Silva Pereira, acusado de assassinar Ademir Araújo Moreno num contínuo de agressões racistas, pareciam há muito fadadas para se transformarem em cadastro.
“O arguido é conhecido na comunidade e entre as pessoas da sua geração como pessoa conflituosa e que, em saídas nocturnas, se envolve facilmente em situações de confrontos físicos”, lê-se na acusação do Ministério Público, a que o Afrolink teve acesso.
O documento refere que, a 9 de Março, dias antes da fatídica madrugada do homicídio, “sem qualquer motivo que o justificasse”, Adriano provocou outro homem negro, dirigindo-lhe vários insultos.
“Pretos do caralho! Vêm para aqui armar confusão! Vão para a vossa terra!”, disparou o açoriano de 24 anos, impassível diante dos apelos de pacificação.
“Mas tu pensas que és quem para me mandar relaxar??”, contrapunha a quem aconselhava calma, reiterando as ofensas: “Esses pretos pensam que eu tenho medo deles!! Venham!”.
A violência racista, vociferada enquanto batia “com o punho cerrado no próprio peito”, acabou por escalar na madrugada de 17 de Março de 2024, no exterior da discoteca B-Side, na ilha açoriana do Faial.
Segundo várias testemunhas ouvidas pelas autoridades, num primeiro momento o arguido atingiu Ademir com “um a três socos”, mas como este se conseguiu defender, e acabou protegido por outras pessoas que saíram em seu socorro, o agressor acabou por fugir. O assunto parecida resolvido, mas Adriano Pereira não desistiu do ataque.
“Pelas 5h51m, ao passar junto de Ademir Moreno, e sem que nada o fizesse prever, o arguido dirigiu-se-lhe determinada e rapidamente, impossibilitando qualquer reacção deste, e desferiu-lhe um forte murro na cabeça na área temporal esquerda”.
Os factos, reconstituídos pela acusação, precipitaram a queda de Ademir que, “desamparado”, bateu “com a parte de trás da cabeça no chão, perdendo a consciência”.
Assistido no local pelos Bombeiros Voluntários da Horta, o cabo-verdiano naturalizado português foi transportado para o hospital, onde viria a falecer na noite do dia seguinte. Tinha 49 anos, era casado com Lurdes Ferreira, companheira há quase duas décadas e meia, e pai de Luana Moreno, de 21 anos.
O desfecho trágico aconteceu “em consequência directa da conduta” de Adriano Silva Pereira, concluiu o Ministério Público, facto reconhecido pelo próprio agressor.
“O arguido assumiu ser o causador da morte, porque foi ele que desferiu o soco que veio a revelar-se fatídico”, reconhece o seu advogado, Elísio Lourenço, sublinhando que “a única argumentação da defesa tem a ver com uma tentativa permanente de afastar o ódio racial”.
Falando à imprensa, na passada terça-feira, 17, no final da segunda sessão do julgamento – que decorre desde 5 de Junho no Tribunal de Angra do Heroísmo, na ilha açoriana da Terceira –, o jurista reduziu o acto bárbaro do seu cliente a “uma rivalidade apenas, mais nada”, ainda que “haja componente de se tratar de brancos ou negros”.
A tese da defesa evidencia a urgência de criminalização do racismo – conforme reivindica a iniciativa legislativa cidadã lançada no final do ano passado –, e alimenta uma revoltante sensação de injustiça.
“A própria advogada receia que a acusação de ódio racial caia por terra”, lamenta Lurdes Ferreira, viúva de Ademir e mãe da sua filha única.
“Para mim, ele teria que apanhar no mínimo 20 anos”, considera ao Afrolink, enquanto recorda o marido como “uma pessoa carinhosa, amigo do amigo, sempre de bem com a vida”, e incapaz de viver em conflito.
“Sempre que via uma discussão, tentava separar”, conta Lurdes, lembrando que os relatos sobre aquela trágica madrugada indicam que interveio para acabar com uma confusão entre duas jovens mulheres. No caso, a alegada namorada do arguido e uma amiga, de quem teria ciúmes.
“Quis tirar a vida a Ademir, movido por ódio racial”
O retrato amistoso e conciliatório de Ademir contrasta com a violência e crueldade atribuída nos autos a Adriano Silva Pereira.
“O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, e bem sabia que, ao atingir Ademir Moreno com um soco na têmpora esquerda estando este alcoolizado e sendo apanhado de surpresa, o mesmo cairia ao chão, desamparado e viria a bater com a cabeça no solo, como veio a suceder”.
Os factos, realça a acusação, revelam que Adriano “quis tirar a vida a Ademir (…) movido por ódio racial contra o mesmo, por ser afrodescendente, sentimento negativo que expressou ao longo da noite, nos momentos prévios ao fatal desfecho”.
Sem nunca medir as ofensas, repetidas qual mantra do orgulho racista – “Pretos do caralho! Vêm para aqui armar confusão! Vão para a vossa terra!” –, o arguido é agora apresentado pela defesa como alguém que ‘até tem amigos pretos’.
O esforço do advogado Elísio Lourenço de apagar o ódio racial evidenciado na acusação foi notório na sessão da passada terça-feira.
Segundo apurou o Afrolink, junto de uma pessoa que esteve em tribunal, a defesa do arguido tem recorrido a incontáveis “armadilhas” de retórica para transformar um crime hediondo num mero infortúnio.
“Basicamente, a estratégia tem sido pôr tudo em causa. O advogado tem insistido para saber se o empurrão [a Ademir] foi antes ou depois do soco, e se ele caiu por causa de um ou de outro. Claramente, quer dizer que foi um acidente: ele empurrou e, por acaso, o Ademir morreu”.
O jogo de palavras cai no absurdo de fazer de um “você” fundamento de absolvição. Para Elísio Lourenço, advogado do arguido, importa apurar se o seu cliente apregoou “Não tenho medo de pretos”, ou “Não tenho medo de vocês, pretos”, para determinar se o assassinato teve motivação racial.
A diferença apontada pelo jurista sugere que, na sua leitura, o racismo é medido pela quantidade. Como se agredir “estes pretos”, e não “todos os pretos”, fosse de algum modo abonatório.
Vigília por Justiça
A evidente e aviltante desvalorização do ódio racial tem sido contestada pela viúva de Ademir, que insiste no agravamento da acusação de homicídio qualificado por esse motivo.
“Irei recorrer a todas as instâncias que sejam possíveis, para que a Justiça seja feita”, sublinha Lurdes Ferreira, na vigília que se seguiu à segunda sessão do julgamento.
Presente também no arranque das audiências, a 5 de Junho, a técnica auxiliar de enfermagem lamenta o desinteresse e ausência da comunicação social, e lembra que Ademir era, para além de “trabalhador, bom pai, bom marido e bom cidadão”, o “grande amor” da sua vida.
Agora a “viver de fotografias e de lembranças”, conforme mencionou nessa intervenção nos Açores, a viúva partilhou, na conversa com o Afrolink, que encontra força para seguir em frente na filha.
“O que é que vai ser dela, quando eu não estiver por cá?”, inquieta-se, explicando que, aos 17 anos, Luana foi diagnosticada com uma encefalite autoimune. O diagnóstico, que “por milagre”, não lhe custou a vida, é acompanhado, desde então, por uma bateria quotidiana de medicamentos.
“Eu tenho uma incapacidade, a minha filha tem a incapacidade dela, e tem sido muito difícil sobreviver sem o apoio do meu marido”, nota Lurdes, explicando que as duas viagens de ambas aos Açores, para acompanhar o julgamento, foram oferecidas por uma pessoa amiga.
Com a próxima sessão marcada para 2 de Julho, a família ainda não sabe se conseguirá estar presente em tribunal. Mas, nos Açores ou à distância, só há um desfecho aceitável para este julgamento: “A pessoa que cometeu o homicídio tem de ser punida”. Sem atenuantes para o seu ódio racista.
Quem incendiou um autocarro, com o motorista dentro? Ouvimos a “verdadeira história”
Retratados em noticiários televisivos e páginas de jornais como “os atacantes” do motorista da Carris que sofreu queimaduras graves durante os protestos contra o assassinato de Odair Moniz, Pedro Quadros e Wilson Mendes tornaram-se “presas fáceis” de uma investigação que se assemelha a uma perseguição. Detidos preventivamente a 28 de Novembro de 2024, apresentaram, dias depois, a 9 de Dezembro, provas e testemunhas que os retiram do local do crime, para onde as autoridades decidiram que tinham de ser arrastados. “Quiseram mostrar trabalho, e acabaram por prender dois inocentes que culparam à toa”, aponta Pedro, enquanto Wilson ilustra bem as fragilidades do processo: “Chegaram [à minha casa] a perguntar mais pelo meu irmão, porque disseram que eu, ele, e mais uns oito indivíduos teríamos feito aquilo. Mas o meu irmão vive fora de Portugal há 2 anos”. Os dois amigos, com quem o Afrolink falou em momentos distintos, por estarem impedidos de comunicar entre si, foram libertados em Março e em Maio, mas continuam a ter a sua imagem presa ao ataque que quase matou o motorista Tiago Cacais. Exigem, por isso, que se faça justiça, provando a sua inocência, e movendo uma acção contra o Estado. “O mundo sabe o que o motorista contou. Neste caso, acho que foi o que lhe disseram para contar, para tentar arranjar o culpado”, assinala Wilson, demonstrando uma empatia que nunca lhe foi dirigida. “Eu entendo a parte dele. Mas se realmente quer arranjar justiça, não é culpando qualquer um. Não é assim que é feita justiça”.
Retratados em noticiários televisivos e páginas de jornais como “os atacantes” do motorista da Carris que sofreu queimaduras graves durante os protestos contra o assassinato de Odair Moniz, Pedro Quadros e Wilson Mendes tornaram-se “presas fáceis” de uma investigação que se assemelha a uma perseguição. Detidos preventivamente a 28 de Novembro de 2024, apresentaram, dias depois, a 9 de Dezembro, provas e testemunhas que os retiram do local do crime, para onde as autoridades decidiram que tinham de ser arrastados. “Quiseram mostrar trabalho, e acabaram por prender dois inocentes que culparam à toa”, aponta Pedro, enquanto Wilson ilustra bem as fragilidades do processo: “Chegaram [à minha casa] a perguntar mais pelo meu irmão, porque disseram que eu, ele, e mais uns oito indivíduos teríamos feito aquilo. Mas o meu irmão vive fora de Portugal há 2 anos”. Os dois amigos, com quem o Afrolink falou em momentos distintos, por estarem impedidos de comunicar entre si, foram libertados em Março e em Maio, mas continuam a ter a sua imagem presa ao ataque que, a avaliar pelas notícias, quase matou o motorista Tiago Cacais. Exigem, por isso, que se faça justiça, provando a sua inocência, e movendo uma acção contra o Estado. “O mundo sabe o que o motorista contou. Neste caso, acho que foi o que lhe disseram para contar, para tentar arranjar o culpado”, assinala Wilson, demonstrando uma empatia que nunca lhe foi dirigida. “Eu entendo a parte dele. Mas se realmente quer arranjar justiça, não é culpando qualquer um. Não é assim que é feita justiça”.
Pedro Quadros (à esquerda), e Wilson Mendes, em entrevista ao Afrolink
“Atacaram”, “atearam fogo” e “quase mataram”. Em diferentes notícias, na televisão e em jornais, Pedro Quadros e Wilson Mendes surgem como “criminosos” que, sem direito a presunção de inocência, são apontados como os responsáveis do acontecimento mais grave que marcou os protestos contra o assassinato de Odair Moniz, às mãos da Polícia.
O caso em que estão implicados deu-se na madrugada de 24 de Outubro de 2024, quando o motorista da Carris, Tiago Cacais, foi atacado em Santo António dos Cavaleiros, dentro do autocarro que conduzia.
A agressão agravou o tom da contestação que, desde o homicídio de Odair, um par de dias antes, percorria vários bairros da Área Metropolitana de Lisboa, com epicentro no Zambujal, onde a vítima residia, e na Cova da Moura, onde foi mortalmente baleada por um agente da PSP.
A revolta das periferias, impulsionada a partir de uma narrativa policial de criminalização de Dá, como era carinhosamente tratado, estendeu-se por dias, e precipitou uma espécie de nova ‘época de caça’ em bairros de habitação municipal .
“Quiseram mostrar trabalho, e acabaram por prender dois inocentes que culparam à toa”, aponta Pedro Quadros que, juntamente com Wilson Mendes foi preso, sob suspeitas de co-autoria material de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, e outros de incêndio, dano qualificado e omissão de auxílio.
A prisão preventiva, decretada cerca de um mês após o ataque ao motorista – mais concretamente a 28 de Novembro de 2024 – foi, desde o primeiro minuto, contestada por Pedro e Wilson, que, a 9 de Dezembro, através do seu advogado, apresentaram provas e testemunhas que os retiram do local do crime, para onde as autoridades decidiram que tinham de ser arrastados.
Até quem vive fora de Portugal, estava a ser implicado
As fragilidades do processo, de tão gritantes, levaram o Ministério Público a pedir a libertação dos dois amigos, com quem o Afrolink falou em momentos distintos, por estarem impedidos de comunicar entre si.
A conversa ajuda a perceber como as diligências de investigação se assemelham a uma campanha de perseguição, onde o cadastro de ambos os transformou em presas fáceis.
“Chegaram [à minha casa] a perguntar mais pelo meu irmão, porque disseram que eu, ele, e mais uns oito indivíduos teríamos feito aquilo [atacado o autocarro e queimado o motorista]. Mas o meu irmão vive fora de Portugal há 2 anos”.
O relato de Wilson recua os acontecimentos à manhã de final de Novembro, em que, irrompendo pela sua casa adentro, um grupo de agentes parece ter agido sob um único comando: “É preciso deter sem olhar a quem”.
Já nos calabouços da Polícia Judiciária, de onde saiu para o Estabelecimento Prisional de Lisboa, até ser libertado no passado dia 26 de Maio, o jovem artista de 22 anos garante que ficou evidente, no interrogatório, que o seu caso estava a ser instrumentalizado.
“[Os inspectores] acreditaram sempre em mim. Até me disseram que sabiam que não teria sido eu, só que, para me poderem ajudar, eu deveria dizer quem foi. Respondi: não sei, mas eu não fui”, conta Wilson.
Como saber mais se, na altura dos acontecimentos, estava forçado a permanecer em casa, em repouso, por ter o braço ao peito?
Condenados no espaço público, mesmo com provas em contrário
A imobilização temporária, confirmada por registos médicos, foi também corroborada por testemunhos de familiares, com quem o jovem vive, mas as diligências para analisar elementos ilibatórios terá sido repetidamente adiada.
A prioridade, tudo indica, era serenar os ânimos com detenções, que pudessem vingar o motorista, e demonstrar que haveria punição para quem destruiu património público e privado durante os protestos.
De outra forma, como entender que só quatro meses após ter sido decretada a sua prisão preventiva, Pedro, então a trabalhar como electricista, tenha conseguido que os seus registos telefónicos comprovassem o que alegou desde o início: que à hora do ataque ao motorista, estava a quilómetros do local do crime?
Mais do que nunca, importa repetir e insistir nos questionamentos, porque mesmo em liberdade, a sua condenação persiste, conforme revela uma das últimas notícias sobre o caso, embrulhada neste título: “Quase matam e são libertados”.
Inconformados com os julgamentos em praça pública, agravados pela divulgação das suas imagens, Pedro e Wilson prometem agir judicialmente contra os seus detractores.
“Estavam à procura de culpados, porque a população já estava a exigir respostas, e sentiram-se um pouco pressionados. Então, o trabalho que fizeram não foi bem pensado, não foi honesto, foi tudo muito à pressa”, reforça Pedro, de 24 anos, enquanto Wilson partilha um profundo e pesado sentimento de injustiça. “Sei que se o meu irmão estivesse em Portugal também iria dentro”.
As marcas desumanas da violência prisional
A dedução segue a lógica da contaminação por proximidade que parece guiar a investigação. “Todos os que estamos ali no processo, já nos conhecemos há bastante tempo. Estudámos juntos desde a primária”, observa Pedro, que, à semelhança de Wilson, também sentiu o peso do julgamento de grupo no Estabelecimento Prisional de Lisboa.
“Se acontecesse alguma coisa, iriam dizer que fomos nós os dois”, nota Wilson, que amargou quase duas semanas na solitária, experiência comum ao amigo, tal como ele repetidamente tratado pelos guardas como incendiário.
Além de provocações e insultos verbais, ambos relatam situações de violência física, sobre as quais preparam também acções judiciais.
“No primeiro dia em que cheguei, disseram: se um guarda não aguentar contigo, vêm dois; se dois não aguentarem, vêm três; se três não aguentarem, vêm oito. E se oito não aguentarem, podes crer que vêm muito mais”.
Das palavras, acima descritas por Wilson, aos actos, a passagem pela cadeia ficou gravada por manobras diárias de intimidação, onde se multiplicam violências.
“Lá em baixo no castigo [solitária], não tem câmaras, não têm nada. Foi aí que já estavam quatro guardas à minha espera para me agredir. Puxaram-me [até arrancar] duas rastas, que ainda tenho em casa”.
As marcas da prisão vão, contudo, muito além dos ataques.
“Estar ali não é para nenhum ser humano. Vemos ratos a sair da sanita, baratas na comida… os guardas normalmente nem querem saber de nós”, aponta Wilson, relatando um destino de desumanização.
“Eu digo mesmo, numa música que escrevi, que os direitos de um ser humano acabam ali dentro. Mas pior ainda para nós, que fomos lá parar por uma coisa que não fizemos”.
Noutra composição, Wilson, que artisticamente faz do nome Willy assinatura, reflecte sobre o fardo familiar de uma perseguição judicial.
“Os meus pais sabiam que eu estava preso por uma coisa que não fiz. Eles tinham a certeza de que eu estava em casa porque eles estavam lá comigo. Isso deixou-me mais descansado”.
Ao mesmo tempo, sublinha Pedro, a certeza da inocência torna o processo especialmente danoso.
“É um bocado difícil andar na rua, e as pessoas ficarem mesmo aqui, no local onde eu moro, a olhar-me como se fosse um bandido, como se fosse um incendiário”.
A verdadeira história que as provas corroboram, mas ainda não se reflecte em Justiça
Empenhado, tal como Wilson, a libertar-se de toda e qualquer suspeita relacionada com a madrugada de 24 de Outubro, Pedro revela que, da mesma forma que se apressou a disponibilizar os registos telefónicos, também sugeriu que se analisassem imagens de videovigilância.
“O autocarro tem câmaras, mas disseram que não dava para ver as imagens por causa do fumo”, nota o jovem electricista, lembrando que as suspeitas que recaíram sobre si tiveram como fonte exclusiva o testemunho do condutor da Carris.
“O motorista disse que me reconhecia, que me reconheceu, e que já me conhecia há algum tempo, porque eu entrava no autocarro sem pagar bilhete. Mas não é verdade, porque eu não o conheço de lado nenhum, e, se for preciso, a última vez em que andei de autocarro ainda era menor de idade”.
Aliás, se, de facto, existissem imagens incriminatórias, alguém acredita que o Ministério Público fosse pedir a libertação?
“Acho que não há dúvidas quanto a isso”, defende Wilson, ainda hoje às voltas com a mesma pergunta: “Porquê comigo?”.
As memórias da prisão, ainda demasiado presentes, incluem a dor de, pela primeira vez ter visto o pai chorar. “Foi na visita. Quando ele chegou, meteu a mão na cabeça e disse que não estava a acreditar”.
A incredulidade arrastou-se por seis penosos meses de prisão, que Wilson quer deixar completamente para trás.
“Porque eu sei que não estive lá, o Pedro também não esteve lá, então só pode ter sido alguém a dizer [ao motorista]: olha, aponta para este, é mais fácil para podermos resolver o caso.”
Aqui chegados, como reverter os danos de uma acusação tão cruel?
“A justiça que me podem fazer agora é: da mesma forma que se puseram a dizer que eu estava culpado, é porem-se a dizer que estou inocente”, aponta Pedro, sem compreender como é que ainda não está completamente ilibado.
A par da localização do telemóvel, que o afasta do local do crime, o jovem de 24 anos refere que as comunicações efectuadas na madrugada em que está implicado, comprovam que soube do incêndio ao autocarro através da mãe e de um amigo.
Do mesmo modo, Wilson refere que, à hora dos acontecimentos, estava a trocar mensagens, facilmente rastreáveis.
“Se descobriram os verdadeiros culpados ou não, isso, no fundo, não me interessa. Eu quero é provar a minha inocência”, diz, reforçando que esse resultado exige que se conheça “a verdadeira história”. Por isso, decidiu falar com o Afrolink.
“O mundo sabe o que o motorista contou. Neste caso, acho que foi o que lhe disseram para contar, para tentar arranjar o culpado”, reitera Wilson, demonstrando uma empatia que nunca lhe foi dirigida. “Eu entendo a parte dele. Mas se realmente quer arranjar justiça, não é culpando qualquer um. Não é assim que é feita justiça”.
O livro da vida de Ilda escreve-se com música, para virar páginas de dor
A canção "África" marca a estreia discográfica de Ilda Vaz, que, aos 57 anos, aprofunda a assinatura musical desenvolvida a partir da fundação de um grupo de batukaderas, no bairro da Boba, na Amadora. O tema, da autoria da cabo-verdiana, está, desde o início de Setembro, disponível nas plataformas digitais, e dá expressão artística a um de muitos episódios racistas que viveu e vive desde a infância, período marcado por uma viagem no “barco da escravatura”. A experiência é recordada na conversa com o Afrolink, que, além de revisitar marcos de vida, traça planos para um “futuro de esperança”.
A canção "Áfrika" marca a estreia discográfica de Ilda Vaz, que, aos 57 anos, aprofunda a assinatura musical desenvolvida a partir da fundação de um grupo de batukaderas, no bairro da Boba, na Amadora. O tema, da autoria da cabo-verdiana, está, desde o início de Setembro, disponível nas plataformas digitais, e dá expressão artística a um de muitos episódios racistas que viveu e vive desde a infância, período marcado por uma viagem no “barco da escravatura”. A experiência é recordada na conversa com o Afrolink, que, além de revisitar marcos de vida, traça planos para um “futuro de esperança”.
As letras soltam-se em momentos de confronto e adversidade. “Quando estou chateada, a única libertação é a música”, conta Ilda Vaz, desde a infância habituada a transformar os desafios da vida em melodias.
Nascida em Cabo Verde há 57 anos, a fundadora do grupo Batukaderas Bandeirinha Panafrikanista Di Lisboa, recorda, sem uma nota de hesitação, o momento em que trauteou o primeiro tema.
“Tinha três anos, e estávamos no barco que nos levou para São Tomé e Príncipe”, diz, colando flashes do que viveu a um extenso arquivo de memórias maternas.
“Cresci a ouvir esta história: de uma senhora que foi mãe durante essa viagem, morreu e foi atirada para o fundo do mar. Depois entregaram a bebé à irmã, para criar. Disseram que essa menina se chamava Ana Mafalda”.
Estávamos em 1969, Ilda era ainda muito pequena para registar o episódio com tanto detalhe, mas, garante, todas as emoções que acompanharam a saída de Cabo Verde ficaram-lhe gravadas.
Assim que entrou no barco, por exemplo, a sensação de despertença impôs-se. “Isto é estranho. Aqui não é a nossa casa”, recorda-se de ter sentido, puxando para a conversa com o Afrolink não apenas as impressões, mas também algumas descrições.
“Lembro-me da rua onde vivíamos, de um cão, de uma vaca que era preta e branca, e de um caminho estreito que fizemos até entrar num carro, que nos levou à cidade da Praia”.
Naquela altura, São Tomé e Príncipe parecia oferecer um destino melhor para a família, mas entre a promessa de uma vida digna, lavrada em contrato, e a realidade do dia-a-dia, Ilda relata um contínuo de violência.
“Percebi, depois, que aquele era um barco de escravatura”, sublinha, de volta a um capítulo de vida carregado de humilhações e abusos.
“A minha mãe trabalhava na mata do cacau, parida de um mês, com o bebé nas costas, debaixo de chuva. Trabalhava doente”, denuncia, acrescentando que se hoje mal fala português é porque nem os contratados tinham direitos laborais, nem os filhos tinham acesso à educação.
“Depois do 25 de Abril, é que começa a haver isso de ir para a escola, mas também não era para todos”, contrapõe, enquanto revisita episódios de profunda dor. “Tenho muita coisa para contar, coisa de dar nervos mesmo!”, aponta esta trabalhadora do serviço doméstico, sem nunca perder a sintonia do amor.
“Canto para ajudar o nosso povo, o povo de África a ter coragem, a lutar sem odiar, porque o nosso caminho não é de ódio”.
Áfrika, a música de todos
Com a voz projectada sobre a dor das experiências que vive individualmente e que vivemos colectivamente – nomeadamente de racismo –, Ilda vê na música um canal de conhecimento e reconhecimento.
“Como não estudei, a única forma de fazer um livro é a cantar”, nota, sem mãos a medir para o tanto que importa musicar.
Começou por “Áfrika”, o seu tema de estreia, apresentado no final do Verão, e entoado a partir de uma agressão racista sofrida há cerca de 10 anos.
“Trabalhava numa farmácia, e um dia entrou um senhor com um cão grande, todo negro. Eu estava ali a limpar, e o homem olhou para mim com um ódio tão grande, que disse assim para a minha patroa: ‘Olha, tira essa preta daí porque o meu cão não gosta de pretos’. Eu ouvi, mas fingi que não estava a entender, e fiquei em silêncio, quieta”.
Sem tempo para digerir o ataque, Ilda confrontou-se com uma nova agressão: recebeu ordens para se remeter ao piso inferior, e de só voltar a subir quando o cliente saísse, não fosse o animal ficar agitado.
“Perguntei logo: será que é o cão que não gosta de mim, ou é o dono?”.
Para a dona da farmácia não fazia diferença, porque, conforme fez questão de sublinhar, enquanto dava a ordem de clausura, não iria perder um cliente por causa dela. Que é como quem diz, por causa de “uma preta”.
Ilda explodiu em lágrimas, mas, uma a uma, todas foram secando à medida que a letra “Áfrika” se compunha dentro de si. “Dei esse nome porque é música para todos e todas. Para a gente ficar com a vista mais aberta”, explica, visibilizando e vocalizando atenções para a necessidade de um combate anti-racista.
Ao mesmo tempo, “Áfrika” sobressai como uma fonte de energia renovável. “Tenho a minha mãe, que não está bem de saúde, a viver comigo, tenho oito horas de trabalho diárias, tenho as actividades das batukaderas, tenho a casa para arrumar, comida para fazer e, cada vez que não sei como faço tudo isso, fico ainda mais forte”.
Música contra discriminações
Casada há 34 anos, recém-comemorados, e mãe de três, Ilda esbarra numa série de desafios ao seu processo criativo. A começar pela gestão do quotidiano doméstico.
“Eu passo muito mal para fazer letras aqui em casa”, exemplifica, partilhando, entre risos, uma reclamação habitual. “Dizem que sou muito barulhenta, que toda hora estou a cantar. Mas quando a gente gosta a gente não se enerva”.
Mais do que gostar de soltar a voz, a batukadera destaca o efeito catártico das letras surgem a cada trauma, como aquele que traz da infância em São Tomé e Príncipe.
Além da consciência precoce de exploração trabalhista, que massacrou a vida dos pais, a compositora percebeu muito cedo como a pele negra é tratada como “um defeito”.
“Um dia estava a brincar à porta de uma senhora branca, portuguesa, mulher do feitor da roça. Eu era moça pequenininha, a crescer, e ela saiu na janela e insultou-me. Foi tão…”, as palavras falham diante da desumana lembrança, antes de prosseguirmos com a conversa.
“Isso ainda está comigo, e vai ficar. Ela disse: ‘Sua preta, sai daí, vai para a sanzala, canalha, suja, preta do c******.”
Incapaz de entender tamanha violência, a pequena Ilda deu por si a reparar: “Mas eu não estou suja”!.
Ainda com cada um e todos aqueles insultos agarrados à pele, a cabo-verdiana fez deles música.
“O que sinto, o que vejo, o que eu passo todos os dias nas limpezas, e o que os meus irmãos passam, tudo isso está nas minhas letras”, nota, libertando, através das composições, o peso de múltiplas discriminações.
Frente feminina
Desde 1996 em PortugaI, destino de tratamentos médicos do marido – que veio para fazer hemodiálise –, Ilda não esconde o cúmulo de desencantos: “Olha, o negro nunca é bem-vindo para a raça branca. Nunca, nunca, nunca”, insiste, alertando para alguns cuidados a ter.
“A maior parte da nossa raça negra está a entrar num portão que não é nosso. Então eu digo: entra para entender, para perceber, para estudar, mas nunca esquece que, no espírito deles, você não pertence. Por isso, deixa uma fuga para sair, e para outros irmãos entrarem”.
Calejada em episódios racistas, a batucadeira reforça os alertas. “Para eles nós estamos aqui só para trabalhar. Não servimos para mostrar o país, não servimos para ser ministros, não servimos para ser presidentes, porque Portugal tem que ser branco. Nós, negros, temos de estar atentos a isso, e não deixar a cabeça cair em enganos”.
À letra das próprias recomendações, Ilda cuida da mente como quem gere uma biblioteca. Sem desmerecer o lugar “bom” do coração, a cantora defende que “a nossa cabeça é o nosso mundo, porque guarda tudo, tem ferramentas lá dentro, uma espécie de motor”.
Atenta a esse funcionamento, a cantora faz da memória um bem maior, e da saúde mental uma riqueza. Por isso, da mesma forma que encontrou na música uma via para processar vivências dolorosas, e transformá-las em mensagens, Ilda quer contribuir para que mais mulheres africanas descubram a sua força de libertação.
“Há muitas senhoras que têm muito para falar, pessoas da minha idade, com muitas histórias para contar. Mas ficam travadas, às vezes com medo e vergonha, e não mostram a capacidade que têm. Estão a adoecer com depressão. Eu quero estar com elas, e apoiar.”
Os planos passam pela criação de um espaço de mulheres, onde mais novas e mais velhas se possam encontrar, entreajudar e crescer juntas. Unidas para que até o choro que partilhamos seja “de futuro e de esperança”.
“Mataram o Dá!” – no grito de Mónica cabem 23 anos de amor: “E agora?”
A narrativa repete-se nas notícias: sem direito a uma identidade humana, mas com morada “problemática”, e suspeitas de actividade criminosa, os homens negros baleados pela Polícia não têm sequer o direito de gozar do estatuto de vítimas. Pelo contrário, as suas vidas, famílias e bairros vêem-se arrastados para campanhas de desinformação, ódio e linchamentos de carácter. Aconteceu novamente com Odair Moniz, ou simplesmente Dá, atingido mortalmente no tórax e axila por disparos de um agente da PSP. O Afrolink falou com a viúva, Ana Patrícia Moniz, mais conhecida por Mónica, e é guiados pelo seu olhar que aqui estamos.
A narrativa repete-se nas notícias: sem direito a uma identidade humana, mas com morada “problemática”, e suspeitas de actividade criminosa, os homens negros baleados pela Polícia não têm sequer o direito de gozar do estatuto de vítimas. Pelo contrário, as suas vidas, famílias e bairros vêem-se arrastados para campanhas de desinformação, ódio e linchamentos de carácter. Aconteceu novamente com Odair Moniz, ou simplesmente Dá, atingido mortalmente no tórax e axila por disparos de um agente da PSP. O Afrolink falou com a viúva, Ana Patrícia Moniz, mais conhecida por Mónica, e é guiados pelo seu olhar que aqui estamos.
Altar de homenagem a Odair, na casa onde vivia
As contas embrulham-se numa matemática de vida que, a partir de agora, parece condenada a não bater certo, enredada num problema sem solução: a morte. “Tinha 13 anos quando nos conhecemos”, recorda Ana Patrícia Moniz, de seu nominho Mónica, recuando a história aos tempos do bairro 6 de Maio.
Foi aí que ela e Odair Moniz se cruzaram, apaixonaram-se, e nunca mais se largaram. “Casámos em 2008, de papel passado mesmo”, conta a viúva de Odair, ou simplesmente Dá, nome que, desde o início da semana, engrossa a já longa lista de vítimas de violência policial racista em Portugal.
“Eu conheço-o tão bem, tão bem...Cada um com o seu feitio, crescemos juntos, a cada passo, a cada momento bom ou mau”, sublinha ao Afrolink, assinalando que nos seus 36 anos de vida não encontra memórias relevantes sem o seu Dá. Não estranha, por isso, que encontremos Odair tatuado na sua pele.
Juntos construíram 23 anos de história, ligação aprofundada com o nascimento de dois filhos, um de 20 anos e outro de três, núcleo alargado à criação de uma sobrinha.
O legado de amor, visível nas fotografias que povoam o apartamento, situado no bairro do Zambujal, acompanhou Dá até à curva final.
“A senhora é que é a Mónica? Ele estava a chamá-la”. Assim, sem mais, um dos agentes policiais que, na Rua Principal da Cova da Moura, garantia a distância entre os moradores e o local onde Odair foi mortalmente baleado, despachava a conversa.
Pouco passava das seis da manhã, e, no momento dessa troca de palavras, a hair stylist ainda tinha esperança de encontrar e falar com o marido. “Foi o meu filho que me chamou: disse, ‘Mãe, levanta, há alguma coisa com o pai lá na Cova’”.
A morada da morte
De passo acelerado, aos poucos, muito longe de se imaginar viúva, Mónica começou a despertar para a tragédia. Ainda não sabia que Odair tinha sido baleado no tórax e axila, por um agente da PSP, mas, ao perceber para onde tinha sido levado, confrontou-se com o peso da morte.
“O Hospital Amadora-Sintra está ali perto, por isso pensei logo: se foi para o São Francisco Xavier é por causa da morgue”.
A rapidez do raciocínio é perturbadora, por evidenciar um contínuo de perdas.
Quantas delas aconteceram em circunstâncias que levantam suspeitas sobre a actuação policial? Como continuar a dar o benefício da dúvida às autoridades, quando os indícios de abusos se sucedem, e, com eles, a construção de narrativas que criminalizam comunidades e bairros inteiros?
“Eu não sou o dono da verdade, mas o Dá é a pessoa mais calma que eu posso apontar, a pessoa certa para apaziguar certos problemas. Mas os senhores agentes acharam que não, que estava exaltado. Não sei…”.
O testemunho chega-nos de um morador do Zambujal, e rompe um extenso muro de silêncio, erguido como protecção contra a manipulação e instrumentalização – pelos media e políticos – dos discursos que saem do bairro, enlutado desde que a chocante notícia da morte de Odair começou a circular.
“Já mataram um, querem matar outro?”
Nascido na cidade cabo-verdiana da Praia, há 43 anos, Dá veio para Portugal na adolescência. “Vivia na Achada Grande”, recorda Mónica, enquanto segura uma fotografia antiga do marido, transformada numa espécie de portal para boas memórias.
“Dizem coisas sem sentido…que encontraram o Dá com uma faca na mão. O meu marido não é um homem de faca. Ele não anda com faca. Tenho a certeza. Ele não tinha nada porque é uma pessoa pacífica, não de guerra”.
A voz de Mónica vai e vem, enrouquecida e entrecortada pelo som lancinante do choro que vem da sala, onde, horas depois desta conversa com o Afrolink, na terça-feira, 22, novos gritos da família chegam-nos por mensagem.
“A PSP invadiu a casa por volta das 20h. Arrombaram a porta, e, ao mesmo tempo, apontaram uma arma à Mónica, ao irmão e à irmã, e agrediram duas pessoas lá dentro que os confrontaram com o porquê dessa atrocidade. Só pararam com os gritos: “Já mataram um. Querem matar outro?”.
O relato de violência acentua a revolta que se instalou no Zambujal e na Cova da Moura, e que, nos últimos dias, se propagou a vários outros bairros da Área Metropolitana de Lisboa. À medida que os protestos avançam, e as distorções noticiosas se avolumam, os apelos aos registos audiovisuais aumentam.
“Ninguém gravou [o arrombamento da polícia] porque estavam todos em choque, incrédulos mesmo”, conta-nos uma amiga da família, acrescentando que cerca de uma hora depois da primeira investida, os agentes regressaram.
“Aí já estava uma advogada, que os confrontou”, assinala, enquanto insiste no poder das gravações. “Precisamos de provas de tudo”.
“Precisamos de provas de tudo”
Sem vídeos, será que a PSP teria mantido, em comunicado, as primeiras declarações feitas à comunicação social, de que Odair seguia numa viatura roubada quando foi interpelado pelos agentes?
“Precisamos de provas de tudo”, repete a amiga dos Moniz, antes de partilhar mais um episódio de indignidade policial. “A Mónica foi à Judiciária hoje [quarta-feira, 23] e trataram-na muito mal. Ela diz que se sentiu mal, pediu um copo com água, e responderam que, se quisesse, fosse à casa de banho beber, porque só havia água no piso de baixo”.
Os focos de desumanização, em que o luto por Dá é sucessivamente desrespeitado, não estão circunscritos à actuação das forças de segurança.
Pelo contrário, são disseminados por discursos políticos e narrativas noticiosas inflamadas, em que, sem direito a uma identidade humana, mas com morada “problemática” e suspeitas de actividade criminosa, os homens negros baleados pela Polícia não gozam sequer do estatuto de vítimas. Em vez disso, as suas vidas, famílias e bairros vêem-se arrastados para campanhas de desinformação, ódio e linchamentos de carácter.
Odair, que trabalhava como cozinheiro e, há cerca de sete meses, partilhava com Mónica a gestão de um café no Zambujal, foi rapidamente rotulado de “criminoso”, e a sua morte apontada como exemplo de boas práticas policiais.
“Porque é que não parou?”, “Porque é que resistiu?”, “Porque é que andava ali àquela hora?”. Em diferentes versões, entre comentários nas televisões e nos jornais, e reacções nas redes sociais, acicatadas por responsáveis políticos, o veredicto do julgamento público é profundamente incriminatório e dispensa argumentos de defesa.
Afinal, percebe-se entre ocupações de espaço mediático, se há alguém nesta história digno do benefício da dúvida, só pode mesmo ser o polícia, porventura um “português de bem”.
A última cachupa
Já Odair, esse, não passa, aos olhos de quem o condena, de um “bandido que teve o que mereceu”. Menos um negro da ‘cor da ameaça’. Mais uma pessoa violentamente arrancada dos filhos, mulher, amigos e comunidade.
“Estávamos a sair da música ao vivo, e o Dá tinha ido ao café, no Zambujal, buscar cachupa para os miúdos. Ele estava a voltar para a Cova para comerem todos juntos, quando se cruzou com a Polícia. Eles dizem que o mandaram parar, e que ele não obedeceu. Mesmo que isso seja verdade, é suficiente para matar uma pessoa? Ainda por cima desarmada? Como é que um agente treinado dispara assim, logo para a barriga, em vez de apontar para a perna?”.
As perguntas, colocadas por várias pessoas, num entrelaçado de conversas paralelas, permanecem sem respostas, agravando a desconfiança instalada entre moradores e Polícia.
“E agora?”, inquieta-se Mónica, atordoada pela dor de uma certeza tão aberrante quanto dilacerante: “Mataram o Dá!”.
Fronteiras que condenam: “Fui segregado dentro do meu país”
O passeio “Noz Stória”, conduzido por José Baessa de Pina, ou simplesmente Sinho, guia-nos por “lugares destruídos pela imposição do imperialismo”, e aponta os seus “contributos sociais e culturais nunca reconhecidos”. Ao longo de três horas, o também vice-presidente da Associação Cavaleiros de São Brás, situada no Casal da Boba, na Amadora, fala-nos de “uma história não contada”, de “um espaço que existiu e resistiu”, mesmo diante de expressões quotidianas de violência. Contra tudo e contra todos, “aqui houve felicidade”.
O passeio “Noz Stória”, conduzido por José Baessa de Pina, ou simplesmente Sinho, guia-nos por “lugares destruídos pela imposição do imperialismo”, e aponta os seus “contributos sociais e culturais nunca reconhecidos”. Neles cabem festas que celebram rituais e identidades que o colonialismo criminalizou e a polícia continua a reprimir, e também o acolhimento de todas as pessoas, a determinada altura da história, povoado de hordas de filhos de famílias brancas e privilegiadas, expulsos de casa entre percursos de toxicodependência. Ao longo de três horas, o também vice-presidente da Associação Cavaleiros de São Brás, situada no Casal da Boba, na Amadora, fala-nos de “uma história não contada”, de “um espaço que existiu e resistiu”, mesmo diante de expressões quotidianas de violência. Contra tudo e contra todos, “aqui houve felicidade”.
Sinho, o anfitrião do “Noz Stória”
Duas crianças morreram num incêndio, que escancarou a precariedade habitacional em que viviam. Nada mudou. Famílias inteiras perderam tudo com o avanço de cheias, especialmente impiedosas diante da fragilidade infra-estrutural. Nada mudou.
Só quando o negócio das construções rodoviárias se começou a movimentar em redor das Portas de Benfica, é que a realidade nos bairros de auto-construção ali à volta mudou.
O mapa da transformação – em que transacções de asfalto e betão pesaram e continuam a pesar mais do que as pessoas –, traça-se a partir dos passos de José Baessa de Pina, que seguimos durante o passeio “Noz Stória”.
Nesse percurso, construído a partir de memórias individuais e colectivas, Sinho, como o conhecemos, reconstitui caminhos de comunidades desfeitas. Vividas na sua pluralidade – de nacionalidades africanas e de etnias –, e recordadas pela sua força colectiva, bem visível no álbum de fotografias expandido à medida que a rota avança.
“Aqui houve felicidade”, aponta o outrora morador do bairro das Fontainhas, enquanto nos guia por “lugares destruídos pela imposição do imperialismo”, e aponta os seus “contributos sociais e culturais nunca reconhecidos”.
Neles cabem festas que celebram rituais e identidades que o colonialismo criminalizou e a polícia continua a reprimir, e também o acolhimento de todas as pessoas, a determinada altura da história, povoado de filhos de famílias brancas e privilegiadas, expulsos de casa entre percursos de toxicodependência.
Ao longo de três horas, o também vice-presidente da Associação Cavaleiros de São Brás, situada no Casal da Boba, na Amadora, fala-nos de “uma história não contada”, de “um espaço que existiu e resistiu”, mesmo diante de expressões quotidianas de violência.
Exclusão
“Eu fui segregado dentro do meu país. Não é nada inocente”, sublinha Sinho, que encontra nas políticas públicas várias fontes de exclusão.
Por exemplo, nota o anfitrião do “Noz Stória”, o desempenho dos alunos é fortemente influenciado pela escola em que andam, numa demarcação territorial que continua a condenar crianças ao insucesso e abandono precoce dos estudos.
O impacto dessas fronteiras está amplamente reconhecido, por isso, para garantir aos filhos uma educação melhor, há trabalhadoras domésticas que dão a morada dos patrões, explica Sinho, lembrando que a prática – longe de revelar o eventual altruísmo das chefias – acentua relações de dependência. Uma espécie de inversão da dívida histórica, instalada na Escravatura, reforçada no colonialismo, com a violência dos trabalhos forçados dos contratados de São Tomé e Príncipe, e ainda hoje evidente na exploração extractivista do capitalismo, especialmente dura sobre os corpos negros.
“Se essa facilidade [da morada] existe para essas mães trabalhadoras é porque precisam delas com estabilidade”, atira o guia da nossa história, enquanto aproveita para destacar o papel provedor das mulheres nas nossas comunidades.
Foi, por exemplo, graças à sua mãe, e em particular ao amor que sempre recebeu dela, que Sinho não se deixou correr pela raiva e revolta que acompanharam múltiplos episódios de violência racista – tantas vezes indutores de trauma.
“Às vezes, o que safava os nossos pais da intervenção bruta da polícia militar, quando eram parados para entrar no bairro, era o cartão da obra”, assinala, sem esquecer um velho temor. “E se batem na minha mãe?”.
Essas e outras memórias marcam o ritmo do passeio, iniciado nas Portas de Benfica e encerrado diante das marcas do que outrora foi o bairro Estrela D’ África.
Para trás ficaram vestígios das Fontainhas e do Bairro 6 de Maio, atravessados por recordações de rupturas tão abruptas quanto terminais.
Pertença
“Ali, a Dona Rosa e o Tio João tinham porcos, leitões, galinhas, figueiras, e estavam habituados a ir e vir do poço. Depois do realojamento, bastou 1 ano e 30 dias para os dois desaparecerem”.
A lembrança de morte é partilhada por Delson Alexandre, que, tal como Sinho, cresceu entre bairros de auto-construção, entretanto engolidos pelo asfalto.
“Costumo dizer que São Tomé e Príncipe é o meu berço, e esta é a minha casa. O lugar onde quero estar, e onde me sinto bem”, diz Delson ao Afrolink, apressando-se nas distinções. “Quando falo de casa, não estou a falar de Portugal ou de Lisboa, mas sim da Linha de Sintra, da Damaia, do Bairro do Zambujal, da Cova da Moura, da minha Reboleira, da Amadora…a minha Porcalhota”.
O sentimento de pertença e o sentido de comunidade enraizados no passado perduram até hoje, garante Delson, que conserva as antigas relações de vizinhança como quem preserva as mais valiosas ligações familiares.
Muitos, porém, como a Dona Rosa e o Tio João, acabaram por sucumbir à tristeza de uma mudança indesejada.
“Os laços de solidariedade foram quebrados”, comenta Sinho, que responsabiliza o Estado por uma política de abandono.
“Tinha de haver outra solução, outro tipo de realojamento”, defende, recordando as dificuldades de ajuste que sentiu quando, aos 22 anos, se viu obrigado a trocar a morada de toda a vida pelo Casal da Boba.
“Mesmo depois de termos a chave, preferia dormir entre os vários barulhos estranhos das Fontainhas”.
Denúncia
Desperto para cada barreira que foi encontrando, e continua a encontrar, o criador do “Noz Stória”, nascido em 1976 na Maternidade Dona Estefânia, em Lisboa, traça as suas próprias fronteiras: “Não somos pobres, somos empobrecidos”.
Filho de descendentes de cabo-verdianos emigrantes, Sinho defende igualmente que é importante “saber de onde viemos, com os pés no chão”, mas ao mesmo, “sempre almejar mais”. O líder associativo acrescenta ainda que não nos podemos “esquecer da denúncia para a elaboração de políticas de reparação”, dispositivos “de que precisamos urgentemente, para colmatar 50 anos de segregação”.
Desde logo, assinala o nosso guia, importa questionar: “Como dizem que a entrada dos imigrantes é descontrolada, se sempre foi bem controlada?”. Afinal, vemo-la abrir e fechar, à medida dos caprichos do sistema, que põe e dispõe de pessoas como quem manuseia utensílios de produção.
Aliás, as memórias recuam até episódios recorrentes de abuso da polícia municipal que, aproveitando-se de quem, nas ruas, encontrava o seu ganha-pão com a venda de pescado, resolvia ali as necessidades domésticas de peixe.
Violências somadas e multiplicadas, meio século vivido desde a Revolução dos Cravos, Sinho questiona que liberdade existe nas periferias negras, asfixiadas por programas de realojamento que são também de policiamento?
“O sistema sabota a nossa cultura”, considera, dando como exemplo os horários de celebração dos Santos Populares até às 2h, em contraponto com as restrições das festividades dentro da comunidade, silenciadas muito antes da meia-noite.
“A música é uma via de pertença que tem sido travada”, assinala o guia do “Noz Stória”, partilhando outro aspecto da sua identidade precocemente reprimido.
“Eu sinto em crioulo, respiro, penso…e até isso é bloqueado”, adianta, de volta aos bancos de escola, carregados de práticas coloniais.
É também para a Educação aí que se dirige o olhar crítico de Aleksandra Augustynowicz, uma das pessoas no encalço das direcções de Sinho. Há oito anos em Portugal, esta polaca de 29 anos, defende a “importância de consciencializar as pessoas para os factos históricos” que o ensino continua a mascarar. “O que podemos esperar se apenas aprendemos a partir de livros escritos pelos colonizadores?”.
A nossa História não é essa, perdida num labirinto de ficções romantizadas. “Noz Stória” retira-nos daí, e dá-nos caminho para andar. Aproveitemos!