José Semedo Fernandes vê nas alterações à Lei da Nacionalidade um “ajoelhar” do Governo perante a extrema-direita
A Assembleia da República iniciou, na semana passada, a discussão sobre as alterações à Lei da Nacionalidade, cuja votação foi, entretanto, adiada para Setembro. As mudanças, nos termos propostos pelo Governo, representam não apenas um “retrocesso social”, aponta, ao Afrolink, o advogado José Semedo Fernandes, assinalando o “‘ajoelhar’ do Governo diante da deriva populista que Portugal agora atravessa”.
José Semedo Fernandes
Com uma longa e extensa experiência em processos de regularização e acesso à nacionalidade – nomeadamente no Gabinete Jurídico do outrora CNAI – Centro Nacional de Apoio ao Imigrante, hoje CNAIM - Centro Nacional de Apoio à Integração de Migrantes –, José Semedo Fernandes recorda que a estratégia do actual Executivo, de criar uma “confusão entre políticas migratórias e de nacionalidade”, repete a linha adoptada pelo XIX Governo Constitucional, liderado por Pedro Passos Coelho. “Nesse período criaram-se leis que abriram a porta à expulsão de pessoas nascidas em Portugal (filhos de estrangeiros) com base em conceitos indeterminados como a desordem pública”.
Na resposta, por escrito, a um conjunto de questões enviadas pelo Afrolink, o advogado rejeita, igualmente, a ideia de uma política migratória ‘de portas escancaradas’. “De salientar que, no momento da organização da Expo 98, construção da ponte Vasco da Gama e anos seguintes, tivemos uma entrada massiva de imigrantes em Portugal, a maioria em situação irregular, mas esses, por questões económicas, foram “acolhidos” sem qualquer dificuldade”.
O advogado chama ainda a atenção para um aspecto que tem sido ignorado: “Em relação aos filhos de estrangeiros, nascidos em Portugal, o debate tem-se centrado nas crianças que irão nascer, após a publicação da lei, olvidando os efeitos que a mesma produzirá às pessoas que nasceram desde 1981 até à data”.
Debruçando-se sobre esses casos, o especialista salienta que “esse jovens-adultos, nascidos em Portugal, têm sido tratados como estrangeiros sendo (legalmente/burocraticamente) impedidos de ter acesso à nacionalidade portuguesa”. Injustamente.
Em vez de “reparar historicamente esses jovens/adultos, tal como foi feito com os descendentes do Judeus Sefarditas”, o Governo, sob liderança de Luís Montenegro, prefere alimentar o “ódio contra a diferença”, reitera José Semedo Fernandes, peremptório na análise. “Uma das estratégias tem passado pela desumanização do imigrante criando a ideia de que a sua presença é a origem de tudo o que corre mal em Portugal”.
As alterações à Lei da Nacionalidade, propostas pelo Governo, estão a ser apontadas como um retrocesso, e, pior do que isso, como uma inversão do sentido que Portugal vinha dando às suas políticas de acolhimento. Que mudanças destacas, e qual o seu impacto nos processos que tens acompanhado?
As alterações à Lei da Nacionalidade, propostas pelo actual Governo, apresentam-se como um retrocesso nos direitos sociais, cívicos, políticos e até humanitários dos cidadãos imigrantes e dos seus descendentes. Apresenta-se também como um “ajoelhar” do Governo diante da deriva populista que Portugal agora atravessa. Costumo dizer que a alteração da Lei da Nacionalidade portuguesa operada em 1981 foi a pior das atrocidades que o Estado Português cometeu contra milhares de filhos de estrangeiros nascidos em Portugal (com efeitos nefastos desde 1981 até à data), impedindo-os de ter direito à nacionalidade do país onde nasceram. De salientar que os efeitos dessa lei perduram até hoje, condenando milhares desses jovens/adultos a serem estrangeiros, muitos em situação irregular, no país onde nasceram. A proposta do Governo pretende aumentar o tempo de residência legal dos pais, à data do nascimento, para três anos. Ao invés de reparar historicamente esses jovens/adultos, tal como foi feito com os descendentes do Judeus Sefarditas, prepara-se agora para publicar uma lei que prejudicará não apenas as crianças que nascerão após a publicação da Lei, mas também os milhares de jovens/adultos que nasceram desde 1981 até à data. Acresce que, muitos desses jovens, por desconhecimento, resolveram a sua situação através do pedido de nacionalidade por naturalização. Nacionalidade essa que o Governo propõe que seja retirada como pena acessória. Portanto, caso a proposta avance em relação aos filhos dos estrangeiros nascidos em Portugal, será seguramente um retrocesso social.
De que forma tens acompanhado o debate político sobre esta nova lei, nomeadamente, a discussão parlamentar? Que distorções e omissões te saltam à vista?
Em relação aos filhos de estrangeiros, nascidos em Portugal, o debate tem-se centrado nas crianças que irão nascer, após a publicação da lei, olvidando os efeitos que a mesma produzirá às pessoas que nasceram desde 1981 até à data. De reforçar que, esse jovens-adultos, nascidos em Portugal, têm sido tratados como estrangeiros sendo (legalmente/burocraticamente) impedidos de ter acesso à nacionalidade portuguesa.
Estas mudanças legislativas têm sido vistas como uma resposta à agenda populista de extrema-direita, e não como uma resposta a necessidades/problemas existentes no país. Qual seria, na tua óptica, uma resposta adequada, em termos de política de nacionalidade e porquê?
Na minha opinião, estas mudanças, mascaradas de respostas a essa agenda populista, têm “embebido” o nosso tecido social na “solução” do ódio contra a diferença. Uma das estratégias tem passado pela desumanização do imigrante criando a ideia de que a sua presença é a origem de tudo o que corre mal em Portugal.
Entendes que o caminho legislativo que se está a seguir resulta de uma confusão entre políticas migratórias e de nacionalidade? Uma espécie de travão a “novos portugueses” indesejados?
Sim, tenho esse entendimento, visto que não é a primeira vez que essa estratégia é implementada. No XIX Governo Constitucional (começou em 2012 e terminou em 2015), liderado por Pedro Passos Coelho, também se criou uma confusão entre políticas migratórias e de nacionalidade. Nesse período criaram-se leis que abriram a porta à expulsão de pessoas nascidas em Portugal (filhos de estrangeiros), protegidas constitucionalmente, com base em conceitos indeterminados como a desordem pública.
Considerando a tua experiência com processos de regularização, alguma vez houve em Portugal uma política de imigração de portas escancaradas?
Tenho imensas dificuldades em aceitar essa expressão (portas escancaradas) De esclarecer que, a actual Lei da Estrangeiros foi publicada em 2007. Não obstante, essa expressão (portas escancaradas) apenas ganhou força nos últimos cinco anos com o surgimento do Chega, que passou a utilizar o tema da imigração como arma de arremesso. De salientar que, no momento da organização da Expo 98, construção da ponte Vasco da Gama e anos seguintes, tivemos uma entrada massiva de imigrantes em Portugal, a maioria em situação irregular, mas esses, por questões económicas, foram “acolhidos” sem qualquer dificuldade. Acresce que, com a entrada em vigor da Lei de Estrangeiros (em 2007), milhares de cidadãos migrantes (entre eles os cidadãos indostânicos) ajudaram a resgatar a Segurança Social com um saldo positivo de milhões de euros anuais. Também estes foram bem acolhidos até começarem a trazer, nos últimos anos, as mulheres e os filhos.
O aumento do período de permanência no país para requerer cidadania portuguesa é agravado também pela forma como esse prazo é contado: não a partir da entrega do pedido de legalização, mas apenas quando o mesmo é concedido, algo que se pode arrastar no tempo. Há quem refira a inconstitucionalidade deste preceito. Partindo do princípio que a lei passa nestes termos, há caminho legal para contestar essa exigência?
Em relação a essa questão, acredito estarmos na presença de uma diferença de tratamento perante a lei. Violando assim o princípio da igualdade. Nessa senda, só os tribunais poderiam clarificar essa situação.