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Dança, canta, partilha vivência ancestral, segue para o Sacerdócio no Candomblé e dá-se a ouvir na Gulbenkian – ela é Nara Couto

Nascida no bairro baiano do Curuzu, que apresenta como o “mais negro fora de África”, Nara Couto fez carreira como bailarina antes de soltar a voz nos palcos. No próximo sábado, 5 de Julho, é dia de a ouvirmos e aplaudirmos no Jardim de Verão da Gulbenkian, onde actua às 17h. A entrada é livre, mediante levantamento de bilhetes.

Nascida no bairro baiano do Curuzu, que apresenta como o “mais negro fora de África”, Nara Couto viveu na Bahia de origem até aos 11 anos, idade em que se mudou para a Suíça, destino de fixação materna. No regresso a casa, o Balé Floclórico da Bahia fincou-lhe as raízes no palco. “Comecei a dançar aos 17 anos. Então, fiquei no Brasil para construir minha carreira”, conta ao Afrolink. Filha do coreógrafo e director artístico Zebrinha, Nara aprendeu a arte da dança com o pai, e já depois de actuações em salas de todo o mundo como bailarina, aventurou-se na música. Primeiro enquanto backing vocal de figuras como Gilberto Gil, Margareth Menezes, Ivete Sangalo e Daniela Mercury, e desde 2017 em nome próprio, numa assinatura construída sob o impulso criativo de Sara Tavares, a artista está a promover o segundo álbum, intitulado “Orí”. Antes, gravou o single “Linda e Preta” – transformado numa “música de impulsionamento da auto-estima de mulheres negras” –, e lançou o projecto “Outras Áfricas”, onde se afirma como “diplomata cultural”. Agora a caminho do Sacerdócio no Candomblé, a artista, criadora da oficina de movimento “Vivência Ancestral”, vê nesta religião uma forma de preservação da presença de África no Brasil. “O Candomblé é um lugar de resistência muito grande”. No próximo sábado, 5 de Julho, é dia de a ouvirmos e aplaudirmos no Jardim de Verão da Gulbenkian, onde actua às 17h. A entrada é livre, mediante levantamento de bilhetes. Vamos!

Num barco no meio do mar, entre espectáculos por Portugal, Nara Couto encontrou em Sara Tavares o balanço que, até hoje, marca a sua identidade musical.

“Eu disse: é isso! Estou conectada. Foi a primeira vez que ouvi Balancê, e mexeu muito comigo”.

Mergulhada na voz e composição de Sara, Nara fez dela assinatura, e letra a letra, dá-nos a escutá-la no próximo sábado, 5 de Julho, às 17h, no Jardim de Verão da Gulbenkian.

A caminho do concerto, o Afrolink foi conhecer mais sobre a artista, que firmou carreira como bailarina, antes de soltar a voz como cantora.

“As pessoas achavam que eu tinha que cantar um pouco mais forte, mas eu tinha a Sara Tavares como referência. E a Sara cantava sobre amor e sobre a leveza”.

Ainda a refazer-se da dor da perda da cantautora – que teve a oportunidade de ver actuar num concerto em Cabo Verde –, Nara conta como encontrar a voz de Sara, falecida em 2023, a inspirou a querer conhecer mais.

“África chegou até mim porque eu pesquisava muito. E quando comecei nessa busca, a minha referência foi a Sara Tavares, inclusive para a capa de um disco”.

Entretanto embalada também por outras músicas de criação africana, a baiana partilha múltiplas inspirações.

“Em Cabo Verde, eu comecei a ouvir os Tubarões e o Gil Semedo”, assinala, antes de revelar uma companhia de todos os dias.

“Sou muito fã do Paulo Flores – o tio Paulo –, que eu oiço sempre, e com quem tenho contacto”.

A ligação, antecipa Nara ao Afrolink, encaminha-se para uma parceria em fase de construção: “Estamos a conversar sobre projectos futuros”.

Da Bahia para “Outras Áfricas”

Nascida no bairro baiano do Curuzu, que apresenta como o “mais negro fora de África”, a artista viveu na Bahia de origem até aos 11 anos, idade em que se mudou para a Suíça, destino de fixação materna.

No regresso a casa, o Balé Floclórico da Bahia fincou-lhe as raízes no palco.  “Comecei a dançar aos 17 anos. Então, fiquei no Brasil para construir minha carreira”.

Filha do coreógrafo e director artístico Zebrinha, Nara aprendeu a arte da dança com o pai, e foi já depois de actuações em salas de todo o mundo como bailarina, que se aventurou na música.

Primeiro enquanto backing vocal de figuras como Gilberto Gil, Margareth Menezes, Ivete Sangalo e Daniela Mercury, e desde 2017 em nome próprio, a artista está a promover o segundo álbum, intitulado “Orí”.

Antes desta produção, que se vai estender a uma curta-metragem, a baiana gravou o single “Linda e Preta” – transformado numa “música de impulsionamento da auto-estima de mulheres negras” –, e lançou o projecto “Outras Áfricas”, onde se afirma como “diplomata cultural”.

“A intenção é fazer com que a gente realmente faça grandes pontes”, sublinha, depois de uma viagem pela Guiné-Bissau, onde as ligações musicais incluíram um encontro com a Secretária de Estado da Cultura, Nancy Alves Cardoso.

“Imediatamente também escrevi para o Secretário de Cultura do Estado da Bahia para falar: ‘Estou aqui em Guiné-Bissau, estamos conversando e precisamos conversar mais”.

Nara promove e aprofunda esse diálogo a partir do projecto “Outras Áfricas”, que completou uma década em 2024.

A iniciativa, que num primeiro momento foi desenvolvida no Brasil, através do encontro com músicos africanos aí radicados, volta-se agora para os PALOP.

Depois do voo guineense, que teve como anfitrião e parceiro Mû Mbana, a baiana planeia viagens a Cabo Verde e Angola, sempre com ligações de palco e de estúdio.

“Estamos organizando para que todo mês eu possa estar compartilhando uma música com um artista do continente africano”, antecipa Nara, apontando Mû Mbana como o primeiro nessa frente de gravações. 

Danças com ancestrais e Sacerdócio no Candomblé

A rota de expressão e projecção musical combina-se sempre com movimento, hoje traduzido, para além dos palcos, no projecto “Vivência Ancestral”.

A proposta, assinala-se na sinopse, recorre a “momentos práticos multireferenciais das culturas negras e da transmissão oral de conhecimento”, para “criar uma experiência significativa que contribua para o bem-estar pessoal e colectivo, bem como para a preservação das tradições ancestrais a partir da dança”.

Já apresentada em Lisboa e no Porto, a vivência, explica Nara, é sobre ela própria “ser um instrumento que transporta uma mensagem que já foi passada pelos mais velhos”. O processo, sublinha, está enraizado na sua vida.

“É dessa forma que eu também adquiro a minha sabedoria, eu sento e converso com os mais velhos, eu leio livros. Eu ouço o vento, eu ouço o silêncio para depois compartilhar”.

Desengane-se, por isso, quem vai em busca de um workshop de dança. Na “Vivência Ancestral”, Nara entrega conexão – de cada pessoa consigo própria, com as suas raízes, com a natureza, com o mundo e a humanidade.

“Estamos todos vivendo nosso céu e nosso inferno ao mesmo tempo. Então, quando eu falo alguma coisa, se for importante, aquela pessoa vai acolher e utilizar no dia-a-dia”.

Comunicadora ancestral, a artista coloca em cada mensagem que partilha a intenção “de que as pessoas fiquem bem e que vivam melhor”.

O propósito encaminha os seus passos para o Sacerdócio no Candomblé, que cultua como uma forma de preservação da presença de África no Brasil.

“A forma como a gente come, tanto as comidas, como os alimentos; a forma como nós cantamos, como nós dançamos, tudo isso que um africano que vai no Brasil vê, reconhece e diz ‘Isso é África’, foi preservado através do Candomblé”.

Muito mais do que uma religião, Nara realça que “o Candomblé é um lugar de resistência muito grande”.

Axé!

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No “Refúgio” de Luiana Abrantes, música e moda tecem Humanidade

Lançou o primeiro álbum no final do ano passado, e dá-lhe agora nova vida com três músicas gravadas ao vivo. Entre o “Refúgio” de 2024, e o “Refúgio Relaunch” de 2025, Luiana Abrantes ganhou uma distinção no Brasil, e uma bolsa de criação artística em Portugal, sem perder o fio à meada da “Truly Afro”, a marca de roupa que veste a celebração da sua africanidade angolana. Já a trabalhar no novo disco, conversou com o Afrolink sobre a inspiração para compor, o trabalho, a maternidade, a condição feminina, e o défice de humanidade que nos tem vindo a desequilibrar. “O nosso olhar em relação ao outro tem de ser treinado. As pessoas não têm só um lado mau, também têm alguma coisa boa para dar”.

Lançou o primeiro álbum no final do ano passado, e dá-lhe agora nova vida com três músicas gravadas ao vivo. Entre o “Refúgio” de 2024, e o “Refúgio Relaunch” de 2025, Luiana Abrantes ganhou uma distinção no Brasil, e uma bolsa de criação artística em Portugal, sem perder o fio à meada da “Truly Afro”, a marca de roupa que veste a celebração da sua africanidade angolana. Já a trabalhar no novo disco, conversou com o Afrolink sobre a inspiração para compor, o trabalho, a maternidade, a condição feminina, e o défice de humanidade que nos tem vindo a desequilibrar. “O nosso olhar em relação ao outro tem de ser treinado. As pessoas não têm só um lado mau, também têm alguma coisa boa para dar”.

Luiana Abrantes, vestida com a sua marca, “Truly Afro”

Canta o que escreve, veste o que costura, e, de criação em fruição, Luiana Abrantes deixa-se ser. “Quando não estou a fazer música, estou a fazer peças de roupa. Quando não estou a fazer peças de roupa, estou a fazer música. E acabo por manifestar a minha essência nas duas áreas”.

Criadora da marca de moda “Truly Afro”, e autora do álbum “Refúgio” – lançado em Setembro do ano passado, e relançado agora como “Refúgio Relaunch” –, a cantautora escolhe viver segundo o próprio ritmo, desligada de reguladores externos.

“O nosso tempo aqui passa muito rápido, e eu quero aproveitar da minha maneira, não como o sistema impõe. O «Refúgio» é sobre isso. É uma chamada de atenção para o nosso interior, para o reforçarmos, e não cairmos na armadilha de que temos de estar dentro dos parâmetros em que todos os outros estão”.

Tarimbada nesse fortalecimento interno, a artista, nascida em Luanda há 38 anos, verte-o para as suas composições, que começou por apresentar, single a single, com os temas “Mudança”, “Enamorada” e “Serenidade”.

“Estou sempre a compor, porque penso muito na vida, no que aquilo que vejo me faz sentir, e isso sai muitas vezes em forma de música”.

O processo criativo começou por ganhar expressão discográfica em estúdio, e vai ter agora, na edição “Relaunch”, três temas gravados ao vivo. O primeiro – “Enamorada” – já está disponível nas plataformas digitais, e, anuncia Luiana ao Afrolink, outros dois estão a caminho: “Giramundo” e “Mudança”, este último em versão acústica, só com guitarra e voz.

“Vamos continuar a revisitar o «Refúgio» através do «Relaunch»”, revela a cantautora, que no sábado passado, 31 de Maio, subiu ao palco do This is Sessions, em Lisboa, para um sarau musical.

Novo álbum em construção, com voo para o Brasil no horizonte

A experiência deverá repetir-se durante os próximos meses, antecipa Luiana, que prepara já o segundo álbum, ao abrigo de uma bolsa de criação artística da DG Artes.

A novidade tem lançamento previsto para 2026, e promete impulsionar uma trajectória musical ainda embrionária, mas já distinguida além-fronteiras, num concurso do III Festival Universitário de Música do Gimu – Grupo de Integração Musical da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.

O reconhecimento, por músicos e pesquisadores do campo da etnomusicologia – que se têm debruçado sobre musicalidades africanas e afro-diaspóricas –, destacou a canção “Serenidade” como uma das cinco melhores entre 39 avaliadas.

“Soube do concurso, que está associado a uma universidade, através de um amigo brasileiro, filho de pais angolanos. Candidatei-me, e quando já nem me lembrava disso, fui surpreendida com a notícia de que ganhei”.

O resultado, anunciado no final do ano passado, abre caminho a novos voos.  “Como esta já é a terceira edição, eles estão a preparar-se para organizar um festival na Bahia, e chamar todos os vencedores. Só não sei se será neste ou no próximo ano”.

Seja como for, a iniciativa assume o compromisso de “valorizar a música autoral e original”, e “estreitar as interlocuções entre Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, a partir da cena musical produzida nesses países”.

A proposta, assinala Luiana, encaixa perfeitamente na sua assinatura sonora. “O «Refúgio» tem a participação de artistas de vários países – angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos… –, porque a minha música, no fundo, acaba por ser uma fusão da lusofonia toda”.

Combater a resignação

Apesar de não gostar de criar expectativas – “prefiro viver um dia de cada vez” –, a também designer não abdica da sua medida de sucesso: “É estar em paz, e bem comigo própria”.

O caminho, entre a música e a moda, desbrava-se em contracorrente, tanto a nível pessoal como profissional.

“Tive outros trabalhos antes de ter a minha marca, e percebi que tinha de fazer a minha vida de outra forma, porque não me identifico com o modo como o mercado funciona”.

Além dos constrangimentos de horário, robotizados num modelo “das 9 às 5”, Luiana contesta a normalização das relações desumanas.

“Falo naquela coisa de ter um patrão que fala mal contigo, que te trata mal. Acho que as pessoas começam a acreditar que faz parte. Mas não. Não é bonito, nem é saudável”, sublinha a artista, alertando para os efeitos da resignação.

“As pessoas estão a ficar doentes por causa da forma como o trabalho é exercido. Até parece que se não vives em stress e ansiedade, não estás a trabalhar. Eu, por exemplo, só porque digo que adoro estar no meu ateliê, muitas vezes pensam que tenho um hobby”.

Longe disso, a cantautora e designer lembra que o destino freelancer tem o seu preço.

“Abdiquei de um trabalho com um salário garantido. Foi uma escolha, porque prefiro estar em paz, e ganhar menos nesta fase”, aponta, sem romantizações. “Tive de criar as condições para isso, porque a vida de empreendedor não é fácil”.

Acolher o ciclo humano, em contracorrente

Também em contraciclo, Luiana avançou para a maternidade quando, à sua volta, o mundo seguia noutras direcções.

“Ouvi muitas críticas. Havia mesmo quem dissesse: ‘Não podes ser mãe, ainda não acabaste o curso’”.

Hoje com dois filhos adolescentes, a cantautora conta que vive esta etapa da vida de uma maneira muito leve.

“Se calhar é da forma como nós pensamos em África: onde come um ou dois, comem três. Eu considero que o planeamento é importantíssimo, mas o planeamento excessivo, que vejo muitas vezes aqui na Europa, faz com que tu não dês determinados passos”.

Pior do que isso, estaremos a contrariar os nossos ciclos humanos?

“Vejo amigas minhas que querem ser mães, e não são porque acham que precisam de criar as condições ideais para isso”, nota a cantautora, distanciando-se de programações de pressão externa.

“Tento sempre passar uma mensagem positiva com a música, para tentar suavizar um pouco o que vejo neste mundo, que agora gira muito à volta da sexualidade da mulher”, explica Luiana, propondo outra abordagem. “Eu não digo que isso seja mau, mas acho que está a ser exacerbado, exposto de uma maneira que para mim não tem a ver com a beleza e sensualidade feminina”.

Apologista de uma alternativa, “mais serena e de paz”, a designer explica que a ruptura com as “normas” também se observa com a marca “Truly Afro”.

“A minha intenção foi tentar normalizar, entre aspas, a questão afro. Não ter vergonha de assumir as nossas origens, e usar com orgulho os tecidos africanos, porque são a nossa identidade”.

Despir as lentes da discriminação

Para além de criações artísticas, Luiana partilha, a cada proposta, a sua expressão humana. “O nosso olhar em relação ao outro tem de ser treinado. As pessoas não têm só um lado mau, também têm alguma coisa boa para dar”.

Embora se tenha confrontado, desde cedo, com situações desumanas do pós-guerra em Angola – incluindo crianças a comerem no lixo, e soldados com os membros amputados a pedir [esmola] nos sinais de trânsito –, a cantautora garante que nunca normalizou a dor ou a violência. Pelo contrário.

“Isso talvez tenha feito com que me tornasse muito sensível ao sofrimento alheio”, reconhece a designer, apelando ao não julgamento.

“Acho que todos temos a centelha divina, de Deus. Por isso, acredito que alguma coisa acabe por espoletar a maldade no decorrer da vida, dependendo do contexto em que somos educados. Então, nós temos que entender as circunstâncias e não julgar facilmente e, às vezes, de forma tão irracional”.  

Mais do que isso, Luiana sugere que usemos mais “a nossa parte humana, o nosso olhar mais sensível e mais humano em relação aos outros”, despindo-o das lentes de discriminação.

“Uma vez li uma frase muito curta, acho que no Pinterest, de que «onde há excesso, há falta de…». Por isso, quando temos excesso de preconceito, temos falta de alguma coisa”.

Do quê, em concreto?

A resposta, defende a criativa, pede refúgio. “Aquilo que nós chamamos de mal, na verdade, para mim, é ignorância em relação ao bem. Isto prende-se muito com aquilo em que acredito: que estamos todos aqui para evoluir, mas cada um de nós está num estágio de evolução diferente. E só através da experiência conseguimos aprender esse bem”.

Ao mesmo tempo, a autora de “Refúgio” alerta para a necessidade de recuperarmos do desencontro de género em que muitas vezes nos arrastamos.

“Nós, mulheres, estamos a ser obrigadas, por causa da questão capitalista, a nos posicionarmos na sociedade como homens, para podermos competir com eles. Então, acabamos por vestir as suas características, e perder algumas das nossas.”

O regresso ou a descoberta da nossa natureza impõe-se, assim, como um resgaste da nossa força e propulsor de uma nova consciência.

“Vivemos numa sociedade muito individualista. Pensamos muito em nós próprios sempre, e esquecemos que fazemos parte de um todo”, lamenta a cantautora, sublinhando que é “apenas mais uma pessoa, no meio de tantas, e todas as pecinhas são importantes”.

Falta ligá-las e, com isso, formar colectivo, processo que pode ser sonoramente impulsionado.

“A música é uma coisa poderosa. Tem uma força e uma energia capaz de activar emoções e estados de alma”. E oferecer “Refúgio”, a partir das plataformas digitais:

Apple

Spotity

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“Reparations Baby!” – o concurso-revolução para descolonizar a nossa TV

“Reparations Baby!” é a mais recente criação de Marco Mendonça, que, com um texto tão mordaz quanto perspicaz, coloca o tema das reparações históricas na agenda…quanto mais não seja cultural. Produzido pelo Teatro Nacional D. Maria II, o espectáculo estreia-se no próximo dia 5 de Junho no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra, antes de seguir para as cidades de Barcelos e de Ílhavo, nos dias 14 e 21 do mesmo mês, respectivamente. A apresentação em Lisboa está marcada para o Teatro Variedades, onde a peça sobe ao palco de 9 a 27 de Julho. Na recta final dos ensaios, o Afrolink conversou com o actor, criador e encenador, que, depois de nos ter apresentado a peça “Blackface”, regressa aos arquivos históricos para nos desafiar a reflectir sobre legados de abusos e desigualdades raciais, e a importância do reconhecimento, e da responsabilização. “Acho que pode ser produtivo saber que a culpa existe, que está de certa forma no ADN da construção do país, e do império”.

“Reparations Baby!” é a mais recente criação de Marco Mendonça que, com um texto tão mordaz quanto perspicaz, coloca o tema das reparações históricas na agenda…quanto mais não seja cultural. Produzido pelo Teatro Nacional D. Maria II, o espectáculo estreia-se no próximo dia 7 de Junho no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra, antes de seguir para as cidades de Barcelos e de Ílhavo, nos dias 14 e 21 do mesmo mês, respectivamente. A apresentação em Lisboa está marcada para o Teatro Variedades, onde a peça sobe ao palco de 9 a 27 de Julho. Na recta final dos ensaios, o Afrolink conversou com o actor, criador e encenador que, depois de nos ter apresentado a peça “Blackface”, regressa aos arquivos históricos para nos desafiar a reflectir sobre legados de abusos e desigualdades raciais, e a importância do reconhecimento e responsabilização. “Pode ser produtivo saber que a culpa existe, que está de certa forma no ADN da construção do país, e do império”.

“Reparations Baby!”, com foto de Pedro Macedo e composição gráfica de Vinicius Batista
Foto de capa de Filipe Ferreira

Náufrago de uma narrativa histórica afundada nos “heróis do mar”, Portugal permanece à deriva, incapaz de sair das profundezas de um passado romantizado, e de trazer à tona a realidade.

“Há uma insistência em falar-se das partes boas, sendo que é preciso procurarmos muito para as encontrar”, aponta Marco Mendonça, que, a partir do teatro, nos encaminha para outra direcção.  

“Falta ao país responsabilização, a tomada de consciência de que o que aconteceu foi terrível, horrendo para todos os países ocupados,”, sublinha o autor de “Reparations Baby!”, peça que se vai estrear no próximo dia 7 de Junho no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra.

Entre ensaios, que foram ajudando a firmar caminhos – “começámos com a versão 6 do texto, agora já vamos na 8.3 – o actor, criador e encenador assume a intenção de constranger.

“Há provocações que eu sinto mesmo que precisam de estar em palco, e espero que elas cheguem nos momentos certeiros”.

O processo cumpre-se com “a ideia de um game show extravagante, com luzes, música, e muita informação”, antecipa Marco que, depois de nos ter apresentado a peça “Blackface”, regressa aos arquivos históricos para nos desafiar a reflectir sobre legados de abusos e desigualdades raciais, e a importância do reconhecimento.

“Pode ser produtivo saber que a culpa existe, e que ela pertence a alguém. Acredito que, mais do que nunca, as pessoas precisam de viver essa culpa, de a sentir, ou de empatizar com quem reclama reparações históricas”.

A abordagem, explica o moçambicano e português, “parte sempre de um lugar muito pessoal”, indissociável das suas próprias vivências, marcadas por um contínuo de heranças coloniais.

“Há coisas que eu me proponho a aprender, para poder falar delas com o mínimo de propriedade”, assinala, enquanto ganha músculo na arte de deslindar factos que o país continua a ocultar.

“O processo de pesquisa para o espetáculo trouxe-me muito mais frustração do que esperança”, admite, alertando para a urgência de uma discussão séria e consequente sobre reparações.

“Começaria por uma coisa muito simples que é assumir, de forma transparente e responsável, tudo o que de mal aconteceu”.

Ou, nas palavras do Presidente da República, evocadas em “Reparations Baby!”, Portugal deve reconhecer aquilo que “de bom e de mau” fez no passado.

“Esse reconhecimento é essencial. A culpa existe, e está, de certa forma, no ADN da construção do país, e do império”, reforça o autor, insistindo na importância da informação.

Por exemplo, qual o peso do trauma ancestral na vida das pessoas negras? “A título muito pessoal, sou uma pessoa que sofre de ansiedade. Fui diagnosticado há cinco anos e, nessa altura, fiquei a pensar muito sobre o nível de hereditariedade dessa condição”, conta Marco, hoje munido de pesquisas que evidenciam a carga transgeracional do que vivemos.

“Fui ler para tentar perceber um bocadinho melhor as minhas ansiedades, e vejo muito fundamento nessa ideia de transmissão”.

A consciência encontra tradução em “Reparations Baby!”, onde o trauma ancestral atinge proporções demolidoras.

“Não são apenas os estudos. Percebi também, ao falar com o elenco, que esse é um peso comum entre nós, pessoas negras, e muito mais transversal do que pensamos”.

Reconhecê-lo permite enfrentá-lo, observa Marco: “A minha ansiedade surgiu como um problema, e agora é simplesmente uma coisa com a qual eu vivo, e está tudo bem”.

O exemplo encaixa na perfeição num dos inúmeros e valiosos ensinamentos que encontramos em James Baldwin: “Nem tudo o que enfrentamos pode ser mudado. Mas nada pode ser mudado enquanto não for enfrentado”.

A citação-lição do escritor americano solta-se no palco de “Reparations Baby!”, onde um concurso televisivo exclusivamente reservado a participantes negros nos confronta com uma sucessão de factos e constrangimentos históricos.

“São coisas que todos os dias me fazem pensar, e dão-me mais vontade de constatar o óbvio da forma menos óbvia possível”.

Entre os “heróis do mar”, e os “heróis do mas”

A proposta combina “segmentos de teoria anti-racista” com “cultura pop luso-africana e trivia colonial”, anuncia-se na sinopse do espectáculo, que apresenta Reparations Baby!, como “um programa que pretende revolucionar o prime time português”.

Mas, estarão as pessoas brancas preparadas para ver pessoas negras num lugar de protagonismo televisivo, e a facturas milhares de euros? E até que ponto se disponibilizam para olhar criticamente para o passado?

“Como espectador, gosto de sair de uma sala de teatro a pensar, a considerar uma perspectiva que nunca tinha ponderado antes. Por isso, se “Reparations Baby!” ajudar o público nesse processo, tanto melhor”.

Além de abrir amplo espaço para debate e reflexão, o espectáculo ilustra bem como a fragilidade branca continua a frustrar possibilidade de avanço.

“Para mim é evidente que existe o medo de uma espécie de vingança, a ideia absurda de que quando um número considerável de pessoas negras estiver em esferas de poder e de decisão, isto vai ser uma razia completa de pessoas brancas”.

Consciente ou inconscientemente, Marco nota que esse receio de perda – mesmo que não se saiba bem o que se está em vias de perder” – continua a travar não apenas o acesso de pessoas negras a oportunidades, mas até a simples possibilidade de diálogo.

“As pessoas negras não estão aqui para tomar o lugar de ninguém. Estão aqui simplesmente para poder concorrer aos lugares, e ter acesso às entrevistas, aos castings, aos editais, ao que quer que seja”, nota, reiterando o pensamento: “É tão fácil perceber que as pessoas brancas não perderiam absolutamente nada, e que as coisas não iriam mudar assim tanto para quem está no poder”.

Falta querer.

Do mesmo modo, Portugal deve procurar entender porque é que se recusa a assumir o “bom” e o “mau” do passado colonizador, justificando sempre as atrocidades do império com os usos e costumes dos “homens desse tempo”. Hoje reféns dos desditos “heróis do mar”, que, entre cenas de “Reparations Baby!”, são certeiramente rebaptizados de “heróis do mas”. Afogados em séculos de mentiras.

Bilheteira:

https://reparationsbaby.carrd.co/

Marco Mendonça, autor de “Reparations Baby!”, aqui em palco com “Blackface”, fotografado por Diana Tinoco

Ficha Técnica

Texto e Direcção Marco Mendonça
Interpretação Ana Tang, Bernardo de Lacerda, Danilo da Matta, June João, Márcia Mendonça, Stela, Vera Cruz
Cenografia Pedro Azevedo
Figurinos Aldina Jesus, Pedro Azevedo
Desenho de luz Teresa Antunes
Desenho de som, Sonoplastia e Música original Mestre André
Vídeo Heverton Harieno
Design Gráfico Vinicius Batista
Apoio à criação Bruno Huca
Participação especial Cláudio Castro, David Esteves, José Neves e Pedro Gil
Produção Teatro Nacional D. Maria II

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Abrir caminho para cumprir Abril, com Marlete e José Carlos na nossa História

Amplamente reproduzida em outdoors gigantes, cartazes de várias dimensões, sites e redes sociais, a imagem aqui em destaque tornou-se, no ano passado, uma bandeira de exaltação do 25 de Abril. “Foi muito bem tirada. Olhamos para ela e vemos força, poder, todo o vigor da juventude, da luta, e das pessoas da altura”, legenda Victor Correia que, numa habitual viagem pelo IC19, reconheceu nessa fotografia a sua própria história. O Afrolink foi ouvi-la, e encontrou Marlete Duarte Lopes Correia Henriques e José Carlos Duarte Lopes Correia a abrir caminho para a nossa Democracia e Liberdade. Vamos com e como eles. Colectivamente.

Amplamente reproduzida em outdoors gigantes, cartazes de várias dimensões, sites e redes sociais, a imagem aqui em destaque tornou-se, no ano passado, uma bandeira de exaltação do 25 de Abril. “Foi muito bem tirada. Olhamos para ela e vemos força, poder, todo o vigor da juventude, da luta, e das pessoas da altura”, legenda Victor Correia que, numa habitual viagem pelo IC19, reconheceu nessa fotografia a sua própria história. O Afrolink foi ouvi-la, e encontrou Marlete Henriques e José Carlos Correia a abrir caminho para a nossa Democracia e Liberdade. Vamos com, e como eles. Colectivamente.

Marlete Henriques com o irmão Victor Correia, junto da imagem que se tornou bandeira da Revolução

Seguia de carro pelo IC19 quando o impacto se deu. “Eh, pá! Aquelas pessoas parecem os meus irmãos”, lembra-se de pensar, ao avistar um enorme outdoor do lado direito da estrada.

As dúvidas acompanharam a viagem de Victor Correia em direcção a Lisboa, até se desfazerem por completo no regresso.

“Passei pelo mesmo sítio, voltei a olhar e disse: só pode ser. Mas foi mais à frente, a caminho do supermercado, que tirei a prova dos nove, ao encontrar a mesma imagem, embora mais pequena, presa a um poste”.

Já estacionado, e diante do cartaz, Victor confirmou a identidade de um dos dois casais da fotografia: Marlete Duarte Lopes Correia Henriques e José Carlos Duarte Lopes Correia.  Nada mais nada menos do que os seus irmãos.

“Foi uma grande surpresa”, conta ao Afrolink, enquanto remexe memórias de resistência. “Eu tenho a foto original, e sei que quem a tirou fez várias”, acrescenta, assumindo-se como o guardião natural do espólio da família.

“Acabei por ficar com os álbuns porque fui o único a permanecer em Portugal”, explica, de volta às movimentações que marcaram o pré e pós 25 de Abril de 1974.

“Digamos que todos nós, na nossa família, éramos activos na política, em defesa das Independências. Mas a Marlete e o José Carlos eram ainda mais, e especialmente ela. Os dois estavam sempre nas manifestações”.

Desde afixar cartazes por todo o lado, para divulgar protestos, e apelar à mobilização, até ‘acampar’ noite e dia à porta da prisão de Caxias para exigir a libertação de presos políticos, o envolvimento dos irmãos Correia construía-se também a partir de sólidas raízes familiares.

“O meu pai tinha um rádio, e ouvíamos a BBC para ficarmos a par do que estava a acontecer. Lembro-me que quando assassinaram Amílcar Cabral [20 de Janeiro de 1973], disseram que o chefe dos terroristas tinha sido morto. Foi assim que anunciaram”.

Já depois da Revolução, e reconhecidas as Independências dos países ocupados por Portugal, a família Correia – que era originária de Cabo Verde, e tinha chegado ao país em 1969 –, começou a fazer o caminho de regresso.

Símbolo da Revolução de Abril, conquista de africanos e portugueses

José Carlos acabou por se fixar em Cabo Verde, depois de uma temporada por Angola, e Marlete seguiu para a Guiné-Bissau, embora tenha, mais tarde, voltado para Portugal, onde vive actualmente.

Mas é pelas memórias do irmão Victor que prefere que a sua fotografia seja legendada.

“Essa imagem passou a ser um símbolo da Revolução de 25 de Abril de 1974, em que a Marlete e o José Carlos aparecem como representantes das ex-colónias, do fim da guerra colonial”, aponta o empresário, que, entre avanços e recuos cronológicos, recupera outra circunstância do passado.

“Morávamos em plena cidade de Lisboa, ali na Estefânia, mais propriamente na Rua General Farinha Beirão, em que as traseiras dão para a Polícia Judiciária”, recorda, adiantando que, pela proximidade com os calabouços, antes de 1974 era comum os prisioneiros tentarem fugir a partir das suas casas. “Depois os polícias cercavam aquilo tudo e resolvia-se”.

Victor sublinha ainda que, mesmo após o derrube do fascismo e conquista da Democracia, foi fundamental continuar a mobilizar pessoas em defesa do pleno reconhecimento dos países africanos que foram ocupados por Portugal.

“Havia manifestações em Lisboa, organizadas por nós, com milhares de pessoas. E nesses milhares de pessoas estamos a falar de muitos africanos, porque nessa altura tínhamos os movimentos de libertação de Angola, Moçambique, São Tomé, Cabo Verde, Guiné….havia o PAIGC, MLSTP, MPLA, Frelimo, e todos se batiam pela Independência. Estávamos unidos, a bater o pé nesse sentido”.

Fica assim evidente que o contributo africano para o 25 de Abril – do qual se tem falado por causa da resistência que Portugal encontrou nos territórios colonizados –, se fez também de forma expressiva a partir de Lisboa, onde as Casas representantes dos diferentes países concertaram esforços de luta.

“Uma dessas Casas ainda existe no mesmo sítio, ali na Rua Duque de Palmela, mas hoje tem o nome de Associação Cabo-Verdiana”, nota Victor, revelando que, para além de fóruns de estrategização, esses espaços eram igualmente importantes vias de confraternização.

Insistindo na ideia de que importa mostrar que o 25 de Abril foi uma conquista de todos, portugueses e africanos, o irmão de Marlete e José Carlos destaca o quanto a fotografia na génese desta conversa é mais uma prova disso mesmo.

“Foi muito bem tirada. Olhamos para ela e vemos força, poder, todo o vigor da juventude, da luta, e das pessoas da altura”.

Reparemos em todas elas.

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Dos saberes do arroz africano à libertação das memórias, Zia Soares revela-nos um outro mundo

Titulada em crioulo guineense, a peça “Arus Femia” – que em português significa “Arroz Fêmea” –, estreia-se esta semana no Teatro do Campo Alegre, no Porto, com duas sessões. A primeira está marcada para sexta-feira, 21, às 19h30, seguindo-se outra no sábado, 22, às 21h30. Neste dia, as reflexões desembrulhadas em palco estendem-se ao programa da Conferência “Arroz Africano no Mundo Atlântico”, que acontece a partir das 14h30, no Rivoli.

Ia e regressava de Bissau, sem outro plano a não ser trabalhar nos campos de arroz. “Interessava-me saber como é que se planta”, conta Zia Soares, que, durante quatro anos, desdobrou viagens à Guiné e, com elas, viu germinar a sua mais recente criação: “Arus Femia”. Presente no ensaio de imprensa, realizado no Espaço da Penha, em Lisboa, o Afrolink conversou com a encenadora e actriz sobre esta produção, que “desarruma” os nossos olhares, escutares e falares. “É sobre isto que este espectáculo trabalha: a criação de um outro mundo, de uma outra língua, de outras perspectivas”.  Titulada em crioulo guineense, a peça – que em português significa “Arroz Fêmea” –, estreia-se esta semana no Teatro Campo Alegre, no Porto, com duas sessões. A primeira está marcada para sexta-feira, 21, às 19h30, seguindo-se outra no sábado, 22, às 21h30. Neste dia, as reflexões desembrulhadas em palco estendem-se ao programa da Conferência “Arroz Africano no Mundo Atlântico”, que acontece a partir das 14h30, no Rivoli. “Para além da obra artística, esta é uma discussão para a sociedade civil”, sublinha Zia Soares, que, de inquietação em criação, encontra novas chaves de leitura do mundo. Desta vez, os questionamentos atravessam a história do arroz africano no mundo Atlântico. “Como uma espécie domesticada de forma independente na África Ocidental há mais de três mil anos chegou às plantações do Novo Mundo? Que protagonismo tiveram as mulheres escravizadas no estabelecimento deste alimento africano vital nas Américas?”. Do palco para a conferência, libertam-se memórias.

Fotos de Arlindo Camacho (também de capa), aqui com elenco do espectáculo “Arus Femia”, que inclui elementos do grupo cultural da Guiné-Bissau, Netos de Bandim

Sem uma única palavra, o diálogo constrói-se de silêncios e gestos, num serpentear de corpos e expressar de pés. Com eles desponta um movimento comum, tão harmonioso quanto misterioso.

“O que é isto? Quem és tu? O que é que tu queres? Não dizes nada?”.

Há uma estranheza neste encontro-confronto que nos prende a atenção, desarruma pensamentos, e marca os primeiros minutos de “Arus Femia”, a mais recente criação de Zia Soares.

“Nós estamos habituados a muito ruído, de todo o tipo, tanto sonoro como visual. E este espectáculo traz outra perspectiva. Há uma possibilidade de mundo no silêncio”, introduz a encenadora e actriz, propondo novos olhares, escutares e falares.

“Na expressão europeia, euro-centrada, as palavras, o que se diz e aquilo que se escreve têm uma hegemonia sobre tudo o resto”, nota a criadora, interessada em conhecer – e dar a conhecer – outros modos de comunicar.

“O silêncio não é uma incapacidade de expressão. Não é uma assombração, e sim um assombramento, uma forma de expressão completamente diferente, que nos diz que há um outro entendimento possível que desconhecemos”.

Mais do que teorizar sobre alternativas de ser e de estar, Zia faz por vivê-las.

Foi assim que, durante quatro anos, desdobrou viagens à Guiné-Bissau, sem outro plano a não ser trabalhar nos campos de arroz: “Interessava-me saber como é que se planta”.

O processo, construído na ligação a, e com outras mulheres e comunidade, acabou por produzir “Arus Femia”, espectáculo titulado em crioulo guineense, e que, em português, significa “Arroz Fêmea”.

“Há um entendimento maior que me acompanha: de que há muitas coisas que tenho de saber, que tenho de descobrir, que tenho de escavar, e em que tenho de mergulhar. Essa é a certeza que tenho, mas aquilo que vou encontrar quando mergulho é desconhecido também para mim”.

Não surpreende, por isso, que a experiência nos arrozais tenha acontecido desligada de programações artísticas, guiada por essa ânsia de conhecer, espicaçada por conversas e leituras sobre o contributo africano para a globalização do consumo do arroz.

“Como uma espécie domesticada de forma independente na África Ocidental há mais de três mil anos chegou às plantações do Novo Mundo? Que protagonismo tiveram as mulheres escravizadas no estabelecimento deste alimento africano vital nas Américas?”.

O palco em discussão

A proposta de reflexão, presente na Conferência “Arroz Africano no Mundo Atlântico”, prolonga a acção de “Arus Femia”, que se estreia esta semana no Teatro Campo Alegre, no Porto, com duas sessões.

A primeira está marcada para sexta-feira, 21, às 19h30, seguindo-se outra no sábado, 22, às 21h30, dia em que a apresentação é antecedida, a partir das 14h30, no Rivoli, por essa Conferência.

“Para além da obra artística, esta é uma discussão para a sociedade civil”, sublinha Zia Soares, que, de inquietação em criação, encontra novas chaves de leitura do mundo, neste caso apontadas para reflectir sobre soberania alimentar, crise climática, migrações e feminismo. Sem quaisquer pressões de entendimentos, garante a criadora.

“Não me sinto responsável pela forma como o público vai receber e interpretar o espectáculo. A mim cabe-me ter coisas que me impactam e inquietam, e que eu traduzo artisticamente”, revela Zia, interessada em estimular a reflexão de quem assiste, seja ela qual for.

Depois do Porto, a proposta segue para Lisboa, apresentando-se, a 2 de Abril, no CAM – Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, com entrada gratuita.

Ainda na capital, o Teatro do Bairro vai acolher cinco dias da produção, de 7 a 11 de Maio, mês que encerra com a presença do espectáculo na primeira Bienal da Guiné-Bissau.

Entre os palcos e a conferência, libertam-se memórias.

“A maioria das pessoas identifica a escravidão com o açúcar e poucas a associam ao arroz”, assinala-se na sinopse da conferência, recordando-se que os africanos escravizados cultivavam o cereal no estuário do Sado, em Portugal, no Brasil, nas Caraíbas e no sul dos Estados Unidos.

Este e outros saberes inspiraram “Arus Femia”, que, no entanto, se solta de cronologias e geografias. “É sobre isto que este espectáculo trabalha: a criação de um outro mundo, de uma outra língua, de outras perspectivas”, reflecte a autora, sublinhando a natureza não exclusivamente humana das personagens.

“Vemos em palco uma comunidade para além de qualquer tempo, em que as memórias não se fixam, estão sempre a circular, como acontece com a natureza, que não está presa, que se vai reconfigurando e se vai transformando”.

Pelo contrário, nota Zia, “nesta nossa forma de vida, estamos a acumular memórias, e como não sabemos o que fazer com elas, isso traz-nos muitas dores”.

Será a Dormência, nome de uma das sete personagens de “Arus Femia”, um modo de resistir à dor das memórias?

Será, como sugere outra personagem, que é preciso afundar, para lembrar? Ou então, lembrar para depois esquecer?

Entre os nossos próprios questionamentos, e aqueles que o espectáculo verbaliza, persiste a certeza de que um outro mundo está ao nosso alcance.

Com “coisas que nós não conseguimos ver, ouvir, nem olhar quando temos tanto ruído à nossa volta”.  

Zia Soares, foto de Sofia Berberan

Direcção, encenação, texto
Zia Soares

Interpretação
Albertinho Monteiro, Aoaní, Dionezia Cá, Izária Sá, Ulé Baldé, Urbício Vieira, Xullaji

Música
Xullaji

Movimento coreográfico
Vânia Doutel Vaz

Cenografia
Neusa Trovoada

Design de iluminação
Carolina Caramelo

Vídeo
António Castelo, Lentim Nhabaly

Video design
Cláudia Sevivas

Conteúdo visual para animação 2D
Camila Reis, Nú Barreto

Figurinos
Neusa Trovoada

Tranças
Mariana Desidério

Tradução para kriol
Miguel de Barros

Engenheiro de som
Jorge Gonçalves

Direcção de produção
Camila Reis

Apoio à pesquisa
TINIGUENA

Produção
Sowing_arts

Coprodução
Teatro Municipal do Porto, Netos de Bandim, STATION service for contemporary dance

Apoio
Câmara Municipal de Lagos/Centro Cultural de Lagos, Casa da Dança, Fundação Calouste Gulbenkian, GROWTH, Largo Residências/Jardins da Bombarda, O Rumo do Fumo, Polo Cultural Gaivotas Boavista, RDP África

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Residência CPLP mais perto de avançar, com africanos a ficar para trás

A Assembleia da República (AR) aprovou, no passado dia 20, alterações à Lei de Estrangeiros, abrindo caminho para que o título de residência da CPLP possa finalmente entrar em vigor, respeitando as normas europeias. As mudanças ainda terão de passar pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da AR, e obter a ratificação presidencial, processo que deverá ficar concluído até ao final do primeiro trimestre de 2025. Até lá, a antropóloga, artista, pesquisadora e activista de Direitos Humanos, Rita Cássia de Silva, alerta para o carácter discriminatório do novo instrumento, numa carta que dirige “às pessoas conterrâneas brasileiras em Portugal”, e que o Afrolink publica na íntegra. Nela, a investigadora defende que “não deve haver pessoas migrantes de 1.ª, 2.ª e 3.ª categorias no âmbito da CPLP”, lamentando que os países africanos tenham ficado para trás. 

A Assembleia da República (AR) aprovou, no passado dia 20, alterações à Lei de Estrangeiros, abrindo caminho para que o título de residência da CPLP possa finalmente entrar em vigor, respeitando as normas europeias. As mudanças ainda terão de passar pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da AR, e obter a ratificação presidencial, processo que deverá ficar concluído até ao final do primeiro trimestre de 2025. Até lá, a antropóloga, artista, pesquisadora e activista de Direitos Humanos, Rita Cássia Silva, alerta para o carácter discriminatório do novo instrumento, numa carta que dirige “às pessoas conterrâneas brasileiras em Portugal”, e que o Afrolink publica na íntegra. Nela, a investigadora defende que “não deve haver pessoas migrantes de 1.ª, 2.ª e 3.ª categorias no âmbito da CPLP”, lamentando que os países africanos tenham ficado para trás. 

por Rita Cássia Silva

Carta às pessoas conterrâneas brasileiras em Portugal: não deve haver pessoas migrantes de 1.ª, 2.ª e 3.ª categorias no âmbito da CPLP

Na Revista Portugal Colonial, de propaganda da expansão colonial em África, publicada em Março de 1931 e que era distribuída para “Agentes em todas as cidades Ultramarinas, Madeira, Açôres, Brasil, etc.”, lê-se na página 5, as vis considerações de um certo Sr. colonialista Dr. Agostinho de Campos:

“Porque é que se coloniza? Para que se teem colónias? Que sentido se contém hoje em dia na expressão “Império Colonial”? Nos séculos XV e XVI Portugueses e Espanhóis navegaram, descobriram, conquistaram mundos novos, e começaram os trabalhos da moderna colonização. A crença e o entusiasmo religioso, a ambição de glória, o espírito cavalheiresco, a ânsia de lucro, o orgulho da nação ou de raça, a energia física e moral exuberante, o génio aventureiro, o instinto das necessidades políticas, as fatalidades geográficas, a lei do menor esforço (verdadeiro ou ilusório), a velocidade adquirida em séculos de guerras contra vizinhos, pobreza e imaginação que via luzir ao longe o oiro apetecido – de todos estes impulsos sociais e naturais, alguns contraditórios, se formou uma corrente de forças, superior à vontade e ao raciocínio humano, que nos fêz – a nós e a outros depois de nós – dilatar a Fé e o Império. Na sua essência a iniciativa e persistência colonizadora resume-se em três palavras: exuberar, possuir, dominar. Dar emprego a energias transbordantes. Ter o que julgamos faltar-nos. E ser senhores –; quanta vez para não sermos escravos!”

Tendo sido um homem fascista, pertencente ao movimento colonialista português tardio, o seu desejo de que os homens portugueses não fossem “escravos” toldou-lhe o espírito. De modo que, não havia dentro de si, uma consciencialização sobre a barbárie. Estima-se que mais de 12 milhões de pessoas africanas foram arrancadas dos territórios africanos e torturadas vivas psicologicamente, fisicamente e patrimonialmente, entre os séculos XVI - XIX, tendo sido Portugal o precursor do tráfico transatlântico, responsável direto pelo tráfico de mais de 5,8 milhões de pessoas africanas.

Tara Roberts, afro-americana, mergulhadora e contadora de histórias, nos relata as suas vivências e experiências em viagens por diferentes territórios em busca de uma compreensão histórica e resignificação dos traumas provocados pelo tráfico transatlântico de pessoas africanas escravizadas. Na reportagem “Uma Mergulhadora procura as histórias daqueles que se perderam nos navios negreiros e encontra o lado humano de uma época trágica”, que foi publicada na Revista National Geographic Portugal e atualizada em 24 de Outubro de 2022, Roberts partilha connosco:

“Também ouço histórias do naufrágio do São José Paquete de África. O navio português viajou de Lisboa para a ilha de Moçambique em 1794. Os esclavagistas colocaram mais de quinhentas pessoas, muitas das quais pertencentes à etnia macua, no porão de carga do navio. Dirigindo-se ao Brasil, o navio teve um encontro fatal com o destino às primeiras horas da manhã de 27 de Dezembro, nas rochas ao largo da Cidade do Cabo, na África do Sul. Duzentos e doze dos prisioneiros africanos a bordo morreram e os sobreviventes foram vendidos como escravos.”

Histórias sobre o tráfico transatlântico de pessoas africanas que foram escravizadas pelos europeus e sobre o colonialismo tardio português, não têm vindo a ser rigorosamente explanadas nas escolas no Brasil e muito menos em Portugal, contribuindo assim para que atualmente estejamos a lidar com ataques à frágil vigência democrática onde as pessoas africanas e os seus descendentes estão continuamente a ser invisibilizadas e prejudicadas individualmente e coletivamente.

Pois bem. O Acordo sobre a Mobilidade entre os Estados-Membros da CPLP, celebrado a 9 de Dezembro de 2021, em comemoração aos 25 anos da CPLP, um diploma que foi votado por todos os partidos políticos do parlamento português, com exceção do partido de extrema-direita, em Novembro de 2021, teve nos países africanos como Cabo Verde e Angola, papéis determinantes e do meu ponto de vista, contemplou um princípio de responsabilização histórica, quiçá reparação colonial. Segundo os dados do relatório de 2023 da AIMA - Agência para a Integração, Migrações e Asilo, 40.266 pessoas oriundas dos territórios africanos que integram a CPLP, 108.232 pessoas oriundas do Brasil e 676 pessoas oriundas de Timor-Leste tiveram concessões de visto de autorização de residência dentro do Acordo de Mobilidade entre os Estados-Membros da CPLP. O acordo esteve estremecido durante o ano passado, devido às demandas europeias relacionadas com o espaço Schengen. Qual não foi a minha surpresa ontem, quando fiquei a compreender que o parlamento português, nomeadamente, os partidos políticos de direita PSD e CDS-PP votaram a favor da concessão de autorizações de residência mediante o acordo de mobilidade CPLP, cujo texto possui discriminações entre países que integram a CPLP! Somente o PCP e o PAN votaram contra! Os países africanos ficaram para trás. Pessoas do Brasil e de Timor-Leste vão poder entrar em Portugal sem visto e pedirão o visto em território português. Todas as pessoas dos 6 países que estão localizados no continente africano, Angola, Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Guiné Equatorial somente poderão entrar em Portugal com visto! Todas as pessoas devem ser respeitadas no seio da CPLP, independente da origem étnico-racial, da nacionalidade, do género, da classe social.

Parece-me ser fundamental solicitar-vos uma observação cuidadosa ao quotidiano português e ao mundo em que estamos a viver e que possam se solidarizar com os povos africanos e seus descendentes. A presença africana em Portugal é secular. Penso que seja um dever das pessoas brasileiras conscientes sobre as origens históricas da formação do povo brasileiro, contribuir para que não haja divisão entre povos na CPLP e sim dignificação histórica, verdadeiro entrelaçamento cultural, reparação colonial. O que significa evidentemente que devemos caminhar em conjunto para a salvaguarda da vigência democrática em Portugal. A corroboração com narrativas de que existem pessoas migrantes de 1.ª, 2.ª e 3.ª categorias no âmbito da CPLP, além de ser um caminho muito perigoso, potencializando o avanço da extrema-direita portuguesa, também potencializa a violação do Princípio da Igualdade, artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa: 1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual. Espero sinceramente que este diploma embora tenha já sido votado na AR - Assembleia da República Portuguesa, que possa ser devidamente retificado, antes de ser legitimado pelo Presidente de Portugal, Professor Marcelo Rebelo de Sousa. Sem África, não haveria Brasil e muito menos, o Portugal que conhecemos hoje. 

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