HISTÓRIAS
O racismo pelo olhar de uma jovem: “Tornei-me negra quando cheguei a Portugal”
Valdeth Dala nasceu e cresceu em Angola, onde viveu até 2023, quando se mudou com a família para Portugal. A experiência confrontou-a com a brutalidade do racismo, realidade sobre a qual a jovem de 19 anos reflecte neste texto, inspirada no caso de Maria Luemba.
Valdeth Dala nasceu e cresceu em Angola, onde viveu até 2023, quando se mudou com a família para Portugal. A experiência confrontou-a com a brutalidade do racismo, realidade sobre a qual a jovem de 19 anos reflecte neste texto, inspirada no caso de Maria Luemba.
Texto de Valdeth Dala
Quando eu me mudei com a minha família para Portugal em 2023, eu percebi que o racismo não só existe, como é uma questão muito séria. Percebi que a realidade é ainda mais brutal do que qualquer filme representa. Percebi que ainda vivemos num mundo em que o negro é discriminado, agredido, menosprezado, e julgado simplesmente por ser negro.
Nasci e cresci em Angola, um país com uma população maioritariamente negra, onde o racismo é arquivado em livros de História, e tido apenas como parte de um passado inconveniente.
Ao longo da minha adolescência, comecei a acompanhar filmes que abordavam, retratavam, denunciavam e contestavam o racismo no período da escravidão, no período colonial e pós-colonial, como por exemplo: “12 Anos Escravo”, “As Serviçais”, “Mandela: Longo Caminho Para Liberdade”, “O Ódio que Semeias”, “Foge”.
Mas, nenhum filme me preparou para a realidade que encontrei cá em Portugal, onde, no dia 12 de Junho, Maria Luemba, uma menina angolana de 17 anos, foi encontrada morta em sua residência, numa vila perto de Aveiro.
As autoridades apontaram para um suicídio, porém os familiares contestam essa versão. Há, inclusivamente, suspeitas de homicídio, implicando um vizinho com desavenças anteriores com a família.
Esse caso gerou grande comoção junto da comunidade negra – mas não em toda a sociedade –, e culminou num protesto realizado no último domingo, 29 de junho.
Mas o que o caso Maria Luemba tem que ver com racismo? Responderei a essa questão nos parágrafos seguintes.
A forma como a investigação à morte de Maria Luemba começou por ser conduzida levanta dúvidas sobre a atuação policial, com fortes indícios de racismo institucional.
Aliás, desde o início houve falta de informações por parte da polícia, remetida ao silêncio.
Por outro lado, a imprensa só passou a cobrir o caso após a mobilização por parte de coletivos negros e protestos organizados nas redes sociais.
Infelizmente, o caso Maria Luemba não é único. São várias as pessoas negras agredidas, oprimidas e assassinadas em Portugal.
Odair Moniz, cabo-verdiano de 43 anos, foi morto a tiro por um agente da PSP durante uma perseguição na Cova da Moura, em outubro de 2024. Cláudia Simões, mulher angolana, foi agredida violentamente por elementos da PSP na Amadora, em janeiro de 2020. Elson Sanches, conhecido como “Kuku”, era um jovem português negro de 14 anos e foi morto a tiro por um agente da PSP durante uma perseguição no antigo bairro de Santa Filomena, em 2009. Luís Giovani Rodrigues, jovem cabo-verdiano de 21 anos, morreu na sequência de uma agressão racista em Bragança, ocorrida em dezembro de 2019.
É enorme a lista de pessoas cujas mortes, opressões, agressões e abusos sofridos não recebem a devida atenção por serem negras, imigrantes ou de contextos socioeconómicos desfavorecidos.
Nos últimos dias, ouvi de um amigo que o sistema já era do jeito que é mesmo antes de eu nascer, e que tentar mudá-lo ou ir contra ele é como tentar remar contra uma maré, que sempre acaba por vencer. A seguir, acrescentou: “É assim, só nos resta aceitar”.
Ele não é a primeira pessoa que eu ouço a dizer isso, e sei que não é a única pessoa a pensar assim. Na verdade, são várias as pessoas que pensam e dizem: “O racismo sempre existiu e sempre existirá”, ou então “O racismo sempre existirá na sociedade, o que nos resta é nos conformarmos com isso”.
Mas como posso me conformar com um sistema que vê a minha cor como arma?
Assim como Grada Kilomba escreveu “me tornei negra quando cheguei aos EUA”, eu também posso afirmar que me tornei negra quando cheguei a Portugal. Foi necessário sair do meu país, da minha bolha, para entender que o racismo não é passado — é presente, mas não pode ser futuro.
Não posso me conformar com um sistema que continuamente agride, oprime e mata pessoas como eu. Poderia ser eu ou a minha irmã no lugar da Maria Luemba. Poderia ser a minha mãe no lugar da Claúdia Simões. Poderia ser o meu irmão no lugar de Elson Sanches. Poderia ser o meu pai no lugar de Odair Moniz. Então, eu digo não. Não posso simplesmente aceitar a falência do sistema. Não posso simplesmente me conformar com uma sociedade racista.
O que está em causa não são apenas casos de mortes violentas, agressão, opressão de pessoas negras, mas sim a forma como o sistema reage – ou se cala – quando a vítima não se enquadra no perfil de “vítima ideal” construído pela sociedade.
Que a justiça por todas as pessoas aqui mencionadas — e também por aquelas que não foram mencionadas — seja feita. Que o sistema mude e melhore, para que as próximas gerações não tenham que lutar mais essa luta.
Faço do sonho de Martin Luther King Jr. meu sonho.
“Tenho um sonho: que os meus quatro filhos um dia viverão numa nação onde não serão julgados pela cor de pele, mas pelo seu caráter.” Martin Luther King Jr.
Pais de Maria Luemba recordam a filha: “Foi, é, e sempre será o melhor de nós. A luz dela nunca se apagará”
Ladis Baltazar e David Luemba, pais de Maria Luemba, jovem angolana de 17 anos encontrada morta em circunstâncias suspeitas no passado dia 12 de Junho, em Sever de Vouga, Aveiro, recordam a “luz própria” e “alegria contagiante” da filha, num texto em que partilham “O que Maria representava” para ambos. As memórias, lidas na manifestação do último domingo, 29 de Junho, já depois do enterro, realizado na véspera, ouviram-se entre apelos à Justiça. “A forma brutal como a tiraram de nós é uma ferida aberta, profunda”, sublinham, garantindo: “Lutaremos até ao fim para que a verdade apareça, para que os culpados sejam responsabilizados, e para que o nome da Maria nunca seja esquecido”. Firmes, Ladis e David, reiteram: “A justiça será o nosso acto de amor por ela, agora que já não podemos protegê-la com os nossos braços”. Sensibilizados com a solidariedade que têm recebido, os pais de Maria agradecem “todas as manifestações de carinho, solidariedade, apoio e orações”, e notam que “esse calor humano tem sido um abraço invisível”, que os tem sustentado e dado forças para continuar. O Afrolink partilha a carta na íntegra.
Ladis Baltazar e David Luemba, pais de Maria Luemba, jovem angolana de 17 anos encontrada morta em circunstâncias suspeitas no passado dia 12 de Junho, em Sever de Vouga, Aveiro, recordam a “luz própria” e “alegria contagiante” da filha, num texto em que partilham “O que Maria representava” para ambos. As memórias, lidas na manifestação do último domingo, 29 de Junho, já depois do enterro, realizado na véspera, ouviram-se entre apelos à Justiça. “A forma brutal como a tiraram de nós é uma ferida aberta, profunda”, sublinham, garantindo: “Lutaremos até ao fim para que a verdade apareça, para que os culpados sejam responsabilizados, e para que o nome da Maria nunca seja esquecido”. Firmes, Ladis e David, reiteram: “A justiça será o nosso acto de amor por ela, agora que já não podemos protegê-la com os nossos braços”. Sensibilizados com a solidariedade que têm recebido, os pais de Maria agradecem “todas as manifestações de carinho, solidariedade, apoio e orações”, e notam que “esse calor humano tem sido um abraço invisível”, que os tem sustentado e dado forças para continuar. O Afrolink partilha a carta na íntegra.
Manifestação por Justiça para Maria Luemba, realizada no último domingo, 29, em Lisboa
O que Maria representava para nós, seus pais
Falar da Maria é mergulhar num mar de luz, ternura e esperança. Nossa filha foi, e sempre será, um milagre em nossas vidas. Era impossível não notar a sua presença — não apenas por sua beleza exterior, mas pelo brilho que vinha de dentro, uma luz própria, rara, que iluminava tudo ao seu redor. Maria era feita de amor, de sonhos e de uma alegria contagiante que tocava todos que cruzavam seu caminho.
Ela era mais do que nossa filha. Era nossa melhor amiga, nossa confidente, a razão de muitos dos nossos sorrisos e orgulho. Tinha o dom de transformar o ordinário em extraordinário, de fazer com que cada momento com ela fosse uma dádiva. Sempre teve um carinho especial por todos – por nós, seus pais, por seus irmãos, avós, tios, primos, amigos… Maria era dessas almas que sabiam amar e ser amadas.
Com apenas 17 anos, já demonstrava uma maturidade admirável e sonhava alto. Queria conquistar o mundo, não com arrogância, mas com gentileza, humildade e muito trabalho. Era uma jovem cheia de vida, com um futuro brilhante desenhado por Deus e impulsionado pelo seu próprio esforço. E, de forma cruel e brutal, isso tudo lhe foi tirado. Roubado. Interrompido.
Diante de tanta dor, nos faltam palavras que estejam à altura do que Maria foi para nós. Como pais, nos resta apenas o consolo de crer que ela não se foi – ela se transformou. A luz que ela era neste mundo agora brilha como estrela no céu, sentada ao lado do Pai Celestial. E mesmo na ausência, ela continua viva em nós, nas nossas memórias, nos nossos gestos, e no amor que nunca deixará de existir.
Agradecemos, de coração, todas as manifestações de carinho, solidariedade, apoio e orações que temos recebido de familiares, amigos, instituições e até de desconhecidos. Esse calor humano tem sido um abraço invisível que nos sustenta e nos dá forças para seguir.
E agora, com o coração ferido, mas com fé inabalável, aguardamos que a justiça seja feita. Porque Maria merece. Porque todas as Marias merecem viver. E porque a luz dela nunca será esquecida. Nunca.
Maria não era apenas nossa filha, era um sopro de Deus em nossas vidas. Tinha o dom raro de transformar o ambiente com sua presença – bastava um sorriso seu para o dia parecer mais leve, bastava um abraço para todo o peso do mundo desaparecer. Ela tinha esse poder, suave e profundo, de tocar o coração das pessoas sem fazer esforço, apenas sendo quem era: doce, sincera, cheia de graça.
Era uma menina que sonhava com os olhos abertos. Sonhava em crescer, estudar, viajar, ajudar os outros… Sonhava em dar orgulho a seus pais – e como deu! Mesmo com tão pouca idade, Maria deixou um legado de amor, simplicidade, respeito e luz. Era admirada pela sua educação, pela forma como tratava os mais velhos, e pela empatia com os mais frágeis. Não havia arrogância nela, apenas uma bondade genuína e uma alegria transparente, dessas que vêm da alma.
Ela não merecia esse fim. Nenhuma filha merece. A forma brutal como a tiraram de nós é uma ferida aberta, profunda, que clama por justiça. Não apenas por nós, seus pais, mas por tudo o que ela representava – por tudo o que ela ainda poderia ser. Lutaremos até ao fim para que a verdade apareça, para que os culpados sejam responsabilizados, e para que o nome da Maria nunca seja esquecido. A justiça será o nosso ato de amor por ela, agora que já não podemos protegê-la com os nossos braços.
E enquanto esperamos por essa justiça, abraçamos cada gesto de carinho que temos recebido. As mensagens, as orações, os abraços silenciosos, os olhos marejados de tantos que, mesmo sem conhecê-la profundamente, sentiram a dor dessa perda. Obrigado, de coração, a cada um que tem caminhado connosco nessa travessia tão difícil.
Maria agora vive em outro plano, onde não há dor, nem injustiça, nem medo. Vive em Deus. E por mais que nos faltem forças, continuaremos de pé – por ela. Porque se a vida nos tirou Maria do presente, o amor que sentimos por ela nos dará forças para honrá-la todos os dias, com coragem, com dignidade, com memória.
Nossa filha foi, é, e sempre será o melhor de nós. A luz dela nunca se apagará.
Como o ódio racial que matou Ademir Moreno está a ser reduzido a jogos de palavras
Sem a presença de jornalistas na sala de audiências, que deixaram de acompanhar o processo ao ponto de terem ignorado o início do julgamento, o caso do assassinato de Ademir Araújo Moreno, cruelmente agredido em Março de 2024, evidencia como as vidas negras (não) importam nesta sociedade. A desvalorização das agressões que sofremos, ardilosamente transformadas em narrativas que nos demonizam e nos responsabilizam pelos nossos próprios homicídios, tem agora no Tribunal de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, nos Açores, um novo palco. É aqui que a defesa de Adriano Silva Pereira, apontado por inúmeras testemunhas como o assassino de Ademir, tem recorrido a incontáveis “armadilhas” de retórica para eliminar a acusação de “ódio racial”, presente desde os primeiros relatos do crime, cometido à porta de uma discoteca, na ilha do Faial. O jogo de palavras – apurou o Afrolink junto de uma pessoa que assistiu à segunda sessão do julgamento, na passada terça-feira, 17 – cai no absurdo de fazer de um “você” fundamento de absolvição. Para Elísio Lourenço, advogado do arguido, importa apurar se o seu cliente apregoou “Não tenho medo de pretos”, ou “Não tenho medo de vocês, pretos” para determinar se o assassinato teve motivação racial. Falando à imprensa – que apesar de não se ter dado ao trabalho de acompanhar a sessão, apareceu no final para registar declarações –, o jurista confirmou que Adriano Silva Pereira “assumiu ser o causador da morte, porque foi ele que desferiu o soco que veio a revelar-se fatídico”, mas reduziu o acto bárbaro a “uma rivalidade apenas, mais nada”, ainda que “haja componente de se tratar de brancos ou negros”. Não é isso, contudo, que indicam vários testemunhos recolhidos pela acusação, convergentes na descrição do arguido como um racista empedernido. A próxima sessão está marcada para dia 2 de Julho, e, com ela, renasce a esperança de que a Justiça seja feita. “Para mim, ele teria que apanhar no mínimo 20 anos”, considera ao Afrolink Lurdes Ferreira, a viúva de Ademir, que recorda o marido como “uma pessoa carinhosa, amigo do amigo, sempre de bem com a vida”. Morreu por ser negro.
Sem a presença de jornalistas na sala de audiências, que deixaram de acompanhar o processo ao ponto de terem ignorado o início do julgamento, o assassinato de Ademir Araújo Moreno, cruelmente agredido em Março de 2024, evidencia como as vidas negras (não) importam nesta sociedade. A desvalorização das agressões que sofremos, ardilosamente transformadas em narrativas que nos demonizam e nos responsabilizam pelos nossos próprios homicídios, tem agora no Tribunal de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, nos Açores, um novo palco. É aqui que a defesa de Adriano Silva Pereira, apontado por inúmeras testemunhas como o assassino de Ademir, tem recorrido a incontáveis “armadilhas” de retórica para eliminar a acusação de “ódio racial”, presente desde os primeiros relatos do crime, cometido à porta de uma discoteca, na ilha do Faial. O jogo de palavras – apurou o Afrolink junto de uma pessoa que assistiu à segunda sessão do julgamento, na passada terça-feira, 17 – cai no absurdo de fazer de um “você” fundamento de absolvição. Para Elísio Lourenço, advogado do arguido, importa apurar se o seu cliente apregoou “Não tenho medo de pretos”, ou “Não tenho medo de vocês, pretos” para determinar se o assassinato teve motivação racial. Falando à imprensa – que apesar de não se ter dado ao trabalho de acompanhar a sessão, apareceu no final para registar declarações –, o jurista confirmou que Adriano Silva Pereira “assumiu ser o causador da morte, porque foi ele que desferiu o soco que veio a revelar-se fatídico”, mas reduziu o acto bárbaro a “uma rivalidade apenas, mais nada”, ainda que “haja componente de se tratar de brancos ou negros”. Não é isso, contudo, que indicam vários testemunhos recolhidos pela acusação, convergentes na descrição do arguido como um racista empedernido. A próxima sessão está marcada para dia 2 de Julho, e, com ela, renasce a esperança de que a Justiça seja feita. “Para mim, ele teria que apanhar no mínimo 20 anos”, considera ao Afrolink Lurdes Ferreira, a viúva de Ademir, que recorda o marido como “uma pessoa carinhosa, amigo do amigo, sempre de bem com a vida”. Morreu por ser negro.
As demonstrações de ódio racial de Adriano Silva Pereira, acusado de assassinar Ademir Araújo Moreno num contínuo de agressões racistas, pareciam há muito fadadas para se transformarem em cadastro.
“O arguido é conhecido na comunidade e entre as pessoas da sua geração como pessoa conflituosa e que, em saídas nocturnas, se envolve facilmente em situações de confrontos físicos”, lê-se na acusação do Ministério Público, a que o Afrolink teve acesso.
O documento refere que, a 9 de Março, dias antes da fatídica madrugada do homicídio, “sem qualquer motivo que o justificasse”, Adriano provocou outro homem negro, dirigindo-lhe vários insultos.
“Pretos do caralho! Vêm para aqui armar confusão! Vão para a vossa terra!”, disparou o açoriano de 24 anos, impassível diante dos apelos de pacificação.
“Mas tu pensas que és quem para me mandar relaxar??”, contrapunha a quem aconselhava calma, reiterando as ofensas: “Esses pretos pensam que eu tenho medo deles!! Venham!”.
A violência racista, vociferada enquanto batia “com o punho cerrado no próprio peito”, acabou por escalar na madrugada de 17 de Março de 2024, no exterior da discoteca B-Side, na ilha açoriana do Faial.
Segundo várias testemunhas ouvidas pelas autoridades, num primeiro momento o arguido atingiu Ademir com “um a três socos”, mas como este se conseguiu defender, e acabou protegido por outras pessoas que saíram em seu socorro, o agressor acabou por fugir. O assunto parecida resolvido, mas Adriano Pereira não desistiu do ataque.
“Pelas 5h51m, ao passar junto de Ademir Moreno, e sem que nada o fizesse prever, o arguido dirigiu-se-lhe determinada e rapidamente, impossibilitando qualquer reacção deste, e desferiu-lhe um forte murro na cabeça na área temporal esquerda”.
Os factos, reconstituídos pela acusação, precipitaram a queda de Ademir que, “desamparado”, bateu “com a parte de trás da cabeça no chão, perdendo a consciência”.
Assistido no local pelos Bombeiros Voluntários da Horta, o cabo-verdiano naturalizado português foi transportado para o hospital, onde viria a falecer na noite do dia seguinte. Tinha 49 anos, era casado com Lurdes Ferreira, companheira há quase duas décadas e meia, e pai de Luana Moreno, de 21 anos.
O desfecho trágico aconteceu “em consequência directa da conduta” de Adriano Silva Pereira, concluiu o Ministério Público, facto reconhecido pelo próprio agressor.
“O arguido assumiu ser o causador da morte, porque foi ele que desferiu o soco que veio a revelar-se fatídico”, reconhece o seu advogado, Elísio Lourenço, sublinhando que “a única argumentação da defesa tem a ver com uma tentativa permanente de afastar o ódio racial”.
Falando à imprensa, na passada terça-feira, 17, no final da segunda sessão do julgamento – que decorre desde 5 de Junho no Tribunal de Angra do Heroísmo, na ilha açoriana da Terceira –, o jurista reduziu o acto bárbaro do seu cliente a “uma rivalidade apenas, mais nada”, ainda que “haja componente de se tratar de brancos ou negros”.
A tese da defesa evidencia a urgência de criminalização do racismo – conforme reivindica a iniciativa legislativa cidadã lançada no final do ano passado –, e alimenta uma revoltante sensação de injustiça.
“A própria advogada receia que a acusação de ódio racial caia por terra”, lamenta Lurdes Ferreira, viúva de Ademir e mãe da sua filha única.
“Para mim, ele teria que apanhar no mínimo 20 anos”, considera ao Afrolink, enquanto recorda o marido como “uma pessoa carinhosa, amigo do amigo, sempre de bem com a vida”, e incapaz de viver em conflito.
“Sempre que via uma discussão, tentava separar”, conta Lurdes, lembrando que os relatos sobre aquela trágica madrugada indicam que interveio para acabar com uma confusão entre duas jovens mulheres. No caso, a alegada namorada do arguido e uma amiga, de quem teria ciúmes.
“Quis tirar a vida a Ademir, movido por ódio racial”
O retrato amistoso e conciliatório de Ademir contrasta com a violência e crueldade atribuída nos autos a Adriano Silva Pereira.
“O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, e bem sabia que, ao atingir Ademir Moreno com um soco na têmpora esquerda estando este alcoolizado e sendo apanhado de surpresa, o mesmo cairia ao chão, desamparado e viria a bater com a cabeça no solo, como veio a suceder”.
Os factos, realça a acusação, revelam que Adriano “quis tirar a vida a Ademir (…) movido por ódio racial contra o mesmo, por ser afrodescendente, sentimento negativo que expressou ao longo da noite, nos momentos prévios ao fatal desfecho”.
Sem nunca medir as ofensas, repetidas qual mantra do orgulho racista – “Pretos do caralho! Vêm para aqui armar confusão! Vão para a vossa terra!” –, o arguido é agora apresentado pela defesa como alguém que ‘até tem amigos pretos’.
O esforço do advogado Elísio Lourenço de apagar o ódio racial evidenciado na acusação foi notório na sessão da passada terça-feira.
Segundo apurou o Afrolink, junto de uma pessoa que esteve em tribunal, a defesa do arguido tem recorrido a incontáveis “armadilhas” de retórica para transformar um crime hediondo num mero infortúnio.
“Basicamente, a estratégia tem sido pôr tudo em causa. O advogado tem insistido para saber se o empurrão [a Ademir] foi antes ou depois do soco, e se ele caiu por causa de um ou de outro. Claramente, quer dizer que foi um acidente: ele empurrou e, por acaso, o Ademir morreu”.
O jogo de palavras cai no absurdo de fazer de um “você” fundamento de absolvição. Para Elísio Lourenço, advogado do arguido, importa apurar se o seu cliente apregoou “Não tenho medo de pretos”, ou “Não tenho medo de vocês, pretos”, para determinar se o assassinato teve motivação racial.
A diferença apontada pelo jurista sugere que, na sua leitura, o racismo é medido pela quantidade. Como se agredir “estes pretos”, e não “todos os pretos”, fosse de algum modo abonatório.
Vigília por Justiça
A evidente e aviltante desvalorização do ódio racial tem sido contestada pela viúva de Ademir, que insiste no agravamento da acusação de homicídio qualificado por esse motivo.
“Irei recorrer a todas as instâncias que sejam possíveis, para que a Justiça seja feita”, sublinha Lurdes Ferreira, na vigília que se seguiu à segunda sessão do julgamento.
Presente também no arranque das audiências, a 5 de Junho, a técnica auxiliar de enfermagem lamenta o desinteresse e ausência da comunicação social, e lembra que Ademir era, para além de “trabalhador, bom pai, bom marido e bom cidadão”, o “grande amor” da sua vida.
Agora a “viver de fotografias e de lembranças”, conforme mencionou nessa intervenção nos Açores, a viúva partilhou, na conversa com o Afrolink, que encontra força para seguir em frente na filha.
“O que é que vai ser dela, quando eu não estiver por cá?”, inquieta-se, explicando que, aos 17 anos, Luana foi diagnosticada com uma encefalite autoimune. O diagnóstico, que “por milagre”, não lhe custou a vida, é acompanhado, desde então, por uma bateria quotidiana de medicamentos.
“Eu tenho uma incapacidade, a minha filha tem a incapacidade dela, e tem sido muito difícil sobreviver sem o apoio do meu marido”, nota Lurdes, explicando que as duas viagens de ambas aos Açores, para acompanhar o julgamento, foram oferecidas por uma pessoa amiga.
Com a próxima sessão marcada para 2 de Julho, a família ainda não sabe se conseguirá estar presente em tribunal. Mas, nos Açores ou à distância, só há um desfecho aceitável para este julgamento: “A pessoa que cometeu o homicídio tem de ser punida”. Sem atenuantes para o seu ódio racista.
Depois do “bom colonizador”, Portugal apresenta o “bom racista”
Especialista em negar evidências históricas, Portugal reinventa-se na arte de ver tudo o que houver para ver, desde que não tenha de enxergar o racismo que habita em si. Por isso, depois do aclamado mito do “bom colonizador”, o país oferece-nos a fantasia do “bom racista” – alguém que fala, age e vota como um racista, mas afinal apenas precisa de atenção e de compreensão. As eleições do último domingo, revelaram mais de 1 milhão e 300 mil predadores dessa espécie. E não há nada de bom nisso!
Especialista em negar evidências históricas, Portugal reinventa-se na arte de ver tudo o que houver para ver, desde que não tenha de enxergar o racismo que habita em si. Por isso, depois do aclamado mito do “bom colonizador”, o país oferece-nos a fantasia do “bom racista” – alguém que fala, age e vota como um racista, mas afinal apenas precisa de atenção e de compreensão. As eleições do último domingo revelaram mais de 1 milhão e 300 mil predadores dessa espécie. E não há nada de bom nisso!
Andei em campanha política nas últimas semanas, tal como em todos os outros dias, por aquilo que defendo sempre: Humanização, Dignificação e Valorização de toda a Humanidade. Não preciso de militância partidária para o fazer, e muito menos de calendários eleitorais, porque a consciência das desigualdades e injustiças sociais é apelo que baste para me mobilizar.
Tenho amor, saúde, tecto, trabalho, comida, alegria e literacias várias para me ir governando apesar de tantos desgovernos. Quantas pessoas podem afirmar o mesmo?
Defendo que todas, todas, todas – mesmo todas – deveriam poder fazê-lo. Por isso, enquanto houver uma que não o possa, estarei em campanha.
Não do tipo da que tivemos nas últimas semanas: marcada pela corrida às eleições do último domingo, tão recheada de bens privados quanto esvaziada de bem-comum.
A minha campanha de todos os dias constrói-se com presença nas escolas, passa pela criação de plataformas de diálogo, assume a denúncia e combate de práticas discriminatórias como um dever, promove espaços de inovação democrática, reconhece o direito de todas as pessoas a serem exactamente o que são, vive da força colectiva.
Pelo contrário, a campanha dos partidos – infelizmente, da esquerda à direita – tem-se alimentado de ausências, para reforçar influências.
Não é disso que precisamos. O que faz falta é uma política com mais pessoas e menos personas, com mais cidadãos e menos patrões, com mais fazedores de soluções e menos fazedores de opiniões. Precisamos dos que vivem no país de todos os dias – e todos os dias – e não dos que habitam numa redoma de país que, em períodos eleitorais, fingem abrir a mais do que isso.
De outro modo, como esperar outros resultados eleitorais? Como fazê-lo, se há muito impera entre nós a política do vale-tudo-desde-que-eu-possa-valer-um-pouco-mais-do-que-o-outro?
Portugal tem séculos de especialização nisso! Do velho tráfico transatlântico de seres humanos à recente perseguição de imigrantes, passando pelo colonialismo, a inferiorização do “outro” tem raízes tão profundas neste país que a relação entre o racismo, a xenofobia e o crescimento da extrema-direita continua a ser desvalorizada de tão naturalizada que está.
Ainda que se aponte o dedo aos descontentes, aos esquecidos, aos desencantados, aos desesperados, aos ignorantes, aos iludidos…aos tudo-tudo-tudo, “não convém chamar-lhes racistas”, recomendam os portugueses mais portugueses que todos.
Que é como quem diz, aqueles que sabem sempre mais do que “os outros”, e que já decidiram que não é benéfico analisar os níveis nacionais de racismo.
O que importa mesmo – explicam-me – é compreender quem expressa a sua adesão a um partido abertamente racista, posicionamento que evidencia o grande problema-que-estamos-com-ele.
Um país que está mais preocupado em acolher os agressores do que em proteger as suas vítimas está submerso em desumanização. Tão simples e tão complexo quanto isso!
E, por mais que eu saiba que analisar os resultados eleitorais faz parte do pacote Legislativas, questiono se podemos fazê-lo com as vivências de todos-todos-todos? Conseguimos reconhecer que os eleitores do Chega podem até estar a ser coagidos pelo medo e minados pelo desencanto, mas isso não os iliba de serem racistas?
Insistir em não ver o racismo presente na votação de 18 de Maio, ou aligeirar o seu impacto, é consentir na sua normalização.
Pior do que isso, revela que a luta política se mantém rasteira, incapaz de se elevar. Porque humanizar quem vota na desumanização ignorando quem está a ser desumanizado evidencia uma única preocupação: recuperar os votos perdidos.
Eu exijo mais do que isso, eu mobilizo-me por mais do que isso, porque enquanto uns lutam apenas por sobressair nas urnas, outros, como eu, lutam para não acabar numa urna. Não é mito. É facto.
Quem tem medo de criminalizar o racismo? Até tu, aliado?
Protestam nas ruas, sempre com o hashtag do momento a tiracolo para poses instagramáveis. Ocupam o espaço mediático com tiradas de eloquência, demasiadas vezes confundidas com originalidades de pensamento. Não perdem uma ocasião para falar de como se integram na vida dos “bairros” – apadrinhados por cachupa e amadrinhados por batukadeiras –, nem se coíbem de usar as vidas negras que observam para teorizar sobre o que (lhes) faz falta. Dizem-se aliados da luta anti-racista, mas revelam-se uns apaniguados do sistema, quando as pessoas pelas quais dizem marchar, e com quais se orgulham de ‘misturar’, ousam pensar e expressar entendimentos diversos – e até contrários – dos seus. Só assim se explica que, em vez de apoiarem a Iniciativa Legislativa Cidadã para criminalizar o racismo, a xenofobia e de todas as práticas discriminatórias, os pretensos aliados prefiram invocar objecções, colocando-se acima das pessoas que sofrem a violência racista e a vêem escapar impune. Como quem sabe sempre mais. Só que não!
Protestam nas ruas, sempre com o hashtag do momento a tiracolo para poses instagramáveis. Ocupam o espaço mediático com tiradas de eloquência, demasiadas vezes confundidas com originalidades de pensamento. Não perdem uma ocasião para falar de como se integram na vida dos “bairros” – apadrinhados por cachupa e amadrinhados por batukadeiras –, nem se coíbem de usar as vidas negras que observam para teorizar sobre o que (lhes) faz falta. Dizem-se aliados da luta anti-racista, mas revelam-se uns apaniguados do sistema, quando as pessoas pelas quais dizem marchar, e com as quais se orgulham de ‘misturar’, ousam pensar e expressar entendimentos diversos – e até contrários – dos seus. Só assim se explica que, em vez de apoiarem a Iniciativa Legislativa Cidadã para criminalizar o racismo, a xenofobia e de todas as práticas discriminatórias, os pretensos aliados prefiram invocar objecções, colocando-se acima das pessoas que sofrem a violência racista e a vêem escapar impune. Como quem sabe sempre mais. Só que não!
Olho para os números que, no início desta semana, me diziam que desde 10 de Dezembro de 2024 – data de formalização da proposta –, cerca de 2.700 pessoas assinaram online a Iniciativa Legislativa Cidadã que prevê a alteração do Código Penal, para que se criminalize o racismo, a xenofobia e de todas as práticas discriminatórias.
Comparo os dados com as largas dezenas de milhares de pessoas que, no passado dia 11 de Janeiro, saíram à rua para combater o racismo e a xenofobia, sob o mote “Não nos encostem à parede”. Junto os cerca de 6.000 seguidores desta campanha no Instagram, e constato o óbvio: há uma linha demasiado ténue que separa um aliado da luta anti-racista de um apaniguado do sistema racista.
Só assim se explica que, em vez de apoiarem a Iniciativa Legislativa Cidadã para criminalizar o racismo, os pretensos aliados prefiram invocar objecções, colocando-se acima das pessoas que sofrem a violência racista e, repetidamente, a vêem escapar impune.
Importa, por isso, lembrar – uma vez mais e sempre – o papel de um aliado, à luz do que definiu a afroamericana Kayla Reed, pessoa negra e queer, estratega do Movimento pelas Vidas Negras, a partir do qual co-fundou o Projecto pela Justiça Eleitoral.
Desconstruindo a palavra inglesa ally (aliado) letra a letra, a activista aponta quatro acções fundamentais para quem ocupa esse lugar.
Passo a enumerar, e a traduzir:
A - always center the impacted – focar sempre naqueles que sofrem o racismo na pele;
L - listen & learn from those who live in the oppression – ouvir e aprender com aqueles que vivem sob a opressão;
L - leverage your privilegie – colocar o próprio privilégio/poder ao serviço da luta;
Y - yield the floor – ceder o ‘palco’.
Entre “Setenta e Quatro”, “Gerador”, “DN” e “Brasil Já”, publicações onde fui e vou assinando opinião, perdi a conta ao número de vezes em que escrevi sobre pessoas que se afirmam aliadas da luta anti-racista, mas estão sempre voltadas para si próprias; não conseguem ouvir sem retorquir um ‘mas’ e perceber que, por mais empáticas que possam ser, e por muito que sofram discriminações, nomeadamente de género, nunca vão saber o que é estar na pele de uma pessoa negra. Nunca. Da mesma forma, não preciso dos dedos das duas mãos para contar o número de pessoas brancas com quem me cruzei que usam da influência que têm para criar acessos efectivos e quebrar barreiras estruturais.
Cabe aqui fazer uma dupla ressalva: uma coisa é abrir a porta a pessoas negras, outra muito diferente é construir espaços que as acolham. Do mesmo modo, convém prestar atenção ao papel que, quando são ‘integradas’ em estruturas brancas, as pessoas negras ocupam. É-nos reconhecido o direito de pensar e de opinar, quando ele coloca em causa o pensamento e opinião brancos?
A menos que acreditem na ficção do racismo reverso, percebam que pessoas brancas nunca saberão o que é ser alvo de racismo, da mesma forma que pessoas que não menstruam nunca saberão o que são dores menstruais, e pessoas que não engravidam nunca saberão o que é passar por um aborto.
Convém, por isso, ouvir e aprender com quem vive essas realidades, e perceber algo fundamental: se as pessoas que vivem as opressões apontam o caminho para as combater, a única coisa que quem não as vive e se diz aliado tem de fazer é apoiar e seguir sob o seu comando.
É vital entender que as dúvidas e questionamentos individuais – por mais legítimos que sejam – não se podem sobrepor a lutas colectivas que combatem violações de Direitos Humanos, e legislam contra a sua impunidade.
A iniciativa cidadã para criminalizar práticas racistas parte do Grupo de Ação Conjunta Contra o Racismo e a Xenofobia, que reúne mais de 80 colectivos “determinados a lutar por um Portugal, uma Europa e um mundo mais inclusivos e interculturais, contra todas as opressões e formas de discriminação”.
Travar o avanço desta proposta é compactuar com o sistema de impunidade, porque sabemos que os casos de racismo raramente são punidos, e, que quando o são, poucas vezes vão além do pagamento de coimas.
Recusar assinar a Iniciativa Legislativa Cidadã de criminalização do racismo não é uma expressão de divergência, é um acto racista.
Porque, conforme explicam ao Afrolink os juristas Anizabela Amaral e Nuno Silva, o que a proposta de alteração ao Código Penal permite é agravar as consequências de práticas já previstas na Lei, para que, por exemplo, agredir pessoas negras– como fez a jornaleira Tânia Laranjo em 2019 com Joacine Katar Moreira e Mamadou Ba –, não seja equiparado à colocação incorrecta de um toldo numa esplanada.
Ignorar que as normas existentes promovem uma cultura de impunidade é próprio de racistas, e de quem não está a focar em quem sofre o racismo na pele. E isso não se resolve com hashtags no Instagram, frases eloquentes, nem rodadas de cachupa.
O livro da vida de Ilda escreve-se com música, para virar páginas de dor
A canção "África" marca a estreia discográfica de Ilda Vaz, que, aos 57 anos, aprofunda a assinatura musical desenvolvida a partir da fundação de um grupo de batukaderas, no bairro da Boba, na Amadora. O tema, da autoria da cabo-verdiana, está, desde o início de Setembro, disponível nas plataformas digitais, e dá expressão artística a um de muitos episódios racistas que viveu e vive desde a infância, período marcado por uma viagem no “barco da escravatura”. A experiência é recordada na conversa com o Afrolink, que, além de revisitar marcos de vida, traça planos para um “futuro de esperança”.
A canção "Áfrika" marca a estreia discográfica de Ilda Vaz, que, aos 57 anos, aprofunda a assinatura musical desenvolvida a partir da fundação de um grupo de batukaderas, no bairro da Boba, na Amadora. O tema, da autoria da cabo-verdiana, está, desde o início de Setembro, disponível nas plataformas digitais, e dá expressão artística a um de muitos episódios racistas que viveu e vive desde a infância, período marcado por uma viagem no “barco da escravatura”. A experiência é recordada na conversa com o Afrolink, que, além de revisitar marcos de vida, traça planos para um “futuro de esperança”.
As letras soltam-se em momentos de confronto e adversidade. “Quando estou chateada, a única libertação é a música”, conta Ilda Vaz, desde a infância habituada a transformar os desafios da vida em melodias.
Nascida em Cabo Verde há 57 anos, a fundadora do grupo Batukaderas Bandeirinha Panafrikanista Di Lisboa, recorda, sem uma nota de hesitação, o momento em que trauteou o primeiro tema.
“Tinha três anos, e estávamos no barco que nos levou para São Tomé e Príncipe”, diz, colando flashes do que viveu a um extenso arquivo de memórias maternas.
“Cresci a ouvir esta história: de uma senhora que foi mãe durante essa viagem, morreu e foi atirada para o fundo do mar. Depois entregaram a bebé à irmã, para criar. Disseram que essa menina se chamava Ana Mafalda”.
Estávamos em 1969, Ilda era ainda muito pequena para registar o episódio com tanto detalhe, mas, garante, todas as emoções que acompanharam a saída de Cabo Verde ficaram-lhe gravadas.
Assim que entrou no barco, por exemplo, a sensação de despertença impôs-se. “Isto é estranho. Aqui não é a nossa casa”, recorda-se de ter sentido, puxando para a conversa com o Afrolink não apenas as impressões, mas também algumas descrições.
“Lembro-me da rua onde vivíamos, de um cão, de uma vaca que era preta e branca, e de um caminho estreito que fizemos até entrar num carro, que nos levou à cidade da Praia”.
Naquela altura, São Tomé e Príncipe parecia oferecer um destino melhor para a família, mas entre a promessa de uma vida digna, lavrada em contrato, e a realidade do dia-a-dia, Ilda relata um contínuo de violência.
“Percebi, depois, que aquele era um barco de escravatura”, sublinha, de volta a um capítulo de vida carregado de humilhações e abusos.
“A minha mãe trabalhava na mata do cacau, parida de um mês, com o bebé nas costas, debaixo de chuva. Trabalhava doente”, denuncia, acrescentando que se hoje mal fala português é porque nem os contratados tinham direitos laborais, nem os filhos tinham acesso à educação.
“Depois do 25 de Abril, é que começa a haver isso de ir para a escola, mas também não era para todos”, contrapõe, enquanto revisita episódios de profunda dor. “Tenho muita coisa para contar, coisa de dar nervos mesmo!”, aponta esta trabalhadora do serviço doméstico, sem nunca perder a sintonia do amor.
“Canto para ajudar o nosso povo, o povo de África a ter coragem, a lutar sem odiar, porque o nosso caminho não é de ódio”.
Áfrika, a música de todos
Com a voz projectada sobre a dor das experiências que vive individualmente e que vivemos colectivamente – nomeadamente de racismo –, Ilda vê na música um canal de conhecimento e reconhecimento.
“Como não estudei, a única forma de fazer um livro é a cantar”, nota, sem mãos a medir para o tanto que importa musicar.
Começou por “Áfrika”, o seu tema de estreia, apresentado no final do Verão, e entoado a partir de uma agressão racista sofrida há cerca de 10 anos.
“Trabalhava numa farmácia, e um dia entrou um senhor com um cão grande, todo negro. Eu estava ali a limpar, e o homem olhou para mim com um ódio tão grande, que disse assim para a minha patroa: ‘Olha, tira essa preta daí porque o meu cão não gosta de pretos’. Eu ouvi, mas fingi que não estava a entender, e fiquei em silêncio, quieta”.
Sem tempo para digerir o ataque, Ilda confrontou-se com uma nova agressão: recebeu ordens para se remeter ao piso inferior, e de só voltar a subir quando o cliente saísse, não fosse o animal ficar agitado.
“Perguntei logo: será que é o cão que não gosta de mim, ou é o dono?”.
Para a dona da farmácia não fazia diferença, porque, conforme fez questão de sublinhar, enquanto dava a ordem de clausura, não iria perder um cliente por causa dela. Que é como quem diz, por causa de “uma preta”.
Ilda explodiu em lágrimas, mas, uma a uma, todas foram secando à medida que a letra “Áfrika” se compunha dentro de si. “Dei esse nome porque é música para todos e todas. Para a gente ficar com a vista mais aberta”, explica, visibilizando e vocalizando atenções para a necessidade de um combate anti-racista.
Ao mesmo tempo, “Áfrika” sobressai como uma fonte de energia renovável. “Tenho a minha mãe, que não está bem de saúde, a viver comigo, tenho oito horas de trabalho diárias, tenho as actividades das batukaderas, tenho a casa para arrumar, comida para fazer e, cada vez que não sei como faço tudo isso, fico ainda mais forte”.
Música contra discriminações
Casada há 34 anos, recém-comemorados, e mãe de três, Ilda esbarra numa série de desafios ao seu processo criativo. A começar pela gestão do quotidiano doméstico.
“Eu passo muito mal para fazer letras aqui em casa”, exemplifica, partilhando, entre risos, uma reclamação habitual. “Dizem que sou muito barulhenta, que toda hora estou a cantar. Mas quando a gente gosta a gente não se enerva”.
Mais do que gostar de soltar a voz, a batukadera destaca o efeito catártico das letras surgem a cada trauma, como aquele que traz da infância em São Tomé e Príncipe.
Além da consciência precoce de exploração trabalhista, que massacrou a vida dos pais, a compositora percebeu muito cedo como a pele negra é tratada como “um defeito”.
“Um dia estava a brincar à porta de uma senhora branca, portuguesa, mulher do feitor da roça. Eu era moça pequenininha, a crescer, e ela saiu na janela e insultou-me. Foi tão…”, as palavras falham diante da desumana lembrança, antes de prosseguirmos com a conversa.
“Isso ainda está comigo, e vai ficar. Ela disse: ‘Sua preta, sai daí, vai para a sanzala, canalha, suja, preta do c******.”
Incapaz de entender tamanha violência, a pequena Ilda deu por si a reparar: “Mas eu não estou suja”!.
Ainda com cada um e todos aqueles insultos agarrados à pele, a cabo-verdiana fez deles música.
“O que sinto, o que vejo, o que eu passo todos os dias nas limpezas, e o que os meus irmãos passam, tudo isso está nas minhas letras”, nota, libertando, através das composições, o peso de múltiplas discriminações.
Frente feminina
Desde 1996 em PortugaI, destino de tratamentos médicos do marido – que veio para fazer hemodiálise –, Ilda não esconde o cúmulo de desencantos: “Olha, o negro nunca é bem-vindo para a raça branca. Nunca, nunca, nunca”, insiste, alertando para alguns cuidados a ter.
“A maior parte da nossa raça negra está a entrar num portão que não é nosso. Então eu digo: entra para entender, para perceber, para estudar, mas nunca esquece que, no espírito deles, você não pertence. Por isso, deixa uma fuga para sair, e para outros irmãos entrarem”.
Calejada em episódios racistas, a batucadeira reforça os alertas. “Para eles nós estamos aqui só para trabalhar. Não servimos para mostrar o país, não servimos para ser ministros, não servimos para ser presidentes, porque Portugal tem que ser branco. Nós, negros, temos de estar atentos a isso, e não deixar a cabeça cair em enganos”.
À letra das próprias recomendações, Ilda cuida da mente como quem gere uma biblioteca. Sem desmerecer o lugar “bom” do coração, a cantora defende que “a nossa cabeça é o nosso mundo, porque guarda tudo, tem ferramentas lá dentro, uma espécie de motor”.
Atenta a esse funcionamento, a cantora faz da memória um bem maior, e da saúde mental uma riqueza. Por isso, da mesma forma que encontrou na música uma via para processar vivências dolorosas, e transformá-las em mensagens, Ilda quer contribuir para que mais mulheres africanas descubram a sua força de libertação.
“Há muitas senhoras que têm muito para falar, pessoas da minha idade, com muitas histórias para contar. Mas ficam travadas, às vezes com medo e vergonha, e não mostram a capacidade que têm. Estão a adoecer com depressão. Eu quero estar com elas, e apoiar.”
Os planos passam pela criação de um espaço de mulheres, onde mais novas e mais velhas se possam encontrar, entreajudar e crescer juntas. Unidas para que até o choro que partilhamos seja “de futuro e de esperança”.
“Mataram o Dá!” – no grito de Mónica cabem 23 anos de amor: “E agora?”
A narrativa repete-se nas notícias: sem direito a uma identidade humana, mas com morada “problemática”, e suspeitas de actividade criminosa, os homens negros baleados pela Polícia não têm sequer o direito de gozar do estatuto de vítimas. Pelo contrário, as suas vidas, famílias e bairros vêem-se arrastados para campanhas de desinformação, ódio e linchamentos de carácter. Aconteceu novamente com Odair Moniz, ou simplesmente Dá, atingido mortalmente no tórax e axila por disparos de um agente da PSP. O Afrolink falou com a viúva, Ana Patrícia Moniz, mais conhecida por Mónica, e é guiados pelo seu olhar que aqui estamos.
A narrativa repete-se nas notícias: sem direito a uma identidade humana, mas com morada “problemática”, e suspeitas de actividade criminosa, os homens negros baleados pela Polícia não têm sequer o direito de gozar do estatuto de vítimas. Pelo contrário, as suas vidas, famílias e bairros vêem-se arrastados para campanhas de desinformação, ódio e linchamentos de carácter. Aconteceu novamente com Odair Moniz, ou simplesmente Dá, atingido mortalmente no tórax e axila por disparos de um agente da PSP. O Afrolink falou com a viúva, Ana Patrícia Moniz, mais conhecida por Mónica, e é guiados pelo seu olhar que aqui estamos.
Altar de homenagem a Odair, na casa onde vivia
As contas embrulham-se numa matemática de vida que, a partir de agora, parece condenada a não bater certo, enredada num problema sem solução: a morte. “Tinha 13 anos quando nos conhecemos”, recorda Ana Patrícia Moniz, de seu nominho Mónica, recuando a história aos tempos do bairro 6 de Maio.
Foi aí que ela e Odair Moniz se cruzaram, apaixonaram-se, e nunca mais se largaram. “Casámos em 2008, de papel passado mesmo”, conta a viúva de Odair, ou simplesmente Dá, nome que, desde o início da semana, engrossa a já longa lista de vítimas de violência policial racista em Portugal.
“Eu conheço-o tão bem, tão bem...Cada um com o seu feitio, crescemos juntos, a cada passo, a cada momento bom ou mau”, sublinha ao Afrolink, assinalando que nos seus 36 anos de vida não encontra memórias relevantes sem o seu Dá. Não estranha, por isso, que encontremos Odair tatuado na sua pele.
Juntos construíram 23 anos de história, ligação aprofundada com o nascimento de dois filhos, um de 20 anos e outro de três, núcleo alargado à criação de uma sobrinha.
O legado de amor, visível nas fotografias que povoam o apartamento, situado no bairro do Zambujal, acompanhou Dá até à curva final.
“A senhora é que é a Mónica? Ele estava a chamá-la”. Assim, sem mais, um dos agentes policiais que, na Rua Principal da Cova da Moura, garantia a distância entre os moradores e o local onde Odair foi mortalmente baleado, despachava a conversa.
Pouco passava das seis da manhã, e, no momento dessa troca de palavras, a hair stylist ainda tinha esperança de encontrar e falar com o marido. “Foi o meu filho que me chamou: disse, ‘Mãe, levanta, há alguma coisa com o pai lá na Cova’”.
A morada da morte
De passo acelerado, aos poucos, muito longe de se imaginar viúva, Mónica começou a despertar para a tragédia. Ainda não sabia que Odair tinha sido baleado no tórax e axila, por um agente da PSP, mas, ao perceber para onde tinha sido levado, confrontou-se com o peso da morte.
“O Hospital Amadora-Sintra está ali perto, por isso pensei logo: se foi para o São Francisco Xavier é por causa da morgue”.
A rapidez do raciocínio é perturbadora, por evidenciar um contínuo de perdas.
Quantas delas aconteceram em circunstâncias que levantam suspeitas sobre a actuação policial? Como continuar a dar o benefício da dúvida às autoridades, quando os indícios de abusos se sucedem, e, com eles, a construção de narrativas que criminalizam comunidades e bairros inteiros?
“Eu não sou o dono da verdade, mas o Dá é a pessoa mais calma que eu posso apontar, a pessoa certa para apaziguar certos problemas. Mas os senhores agentes acharam que não, que estava exaltado. Não sei…”.
O testemunho chega-nos de um morador do Zambujal, e rompe um extenso muro de silêncio, erguido como protecção contra a manipulação e instrumentalização – pelos media e políticos – dos discursos que saem do bairro, enlutado desde que a chocante notícia da morte de Odair começou a circular.
“Já mataram um, querem matar outro?”
Nascido na cidade cabo-verdiana da Praia, há 43 anos, Dá veio para Portugal na adolescência. “Vivia na Achada Grande”, recorda Mónica, enquanto segura uma fotografia antiga do marido, transformada numa espécie de portal para boas memórias.
“Dizem coisas sem sentido…que encontraram o Dá com uma faca na mão. O meu marido não é um homem de faca. Ele não anda com faca. Tenho a certeza. Ele não tinha nada porque é uma pessoa pacífica, não de guerra”.
A voz de Mónica vai e vem, enrouquecida e entrecortada pelo som lancinante do choro que vem da sala, onde, horas depois desta conversa com o Afrolink, na terça-feira, 22, novos gritos da família chegam-nos por mensagem.
“A PSP invadiu a casa por volta das 20h. Arrombaram a porta, e, ao mesmo tempo, apontaram uma arma à Mónica, ao irmão e à irmã, e agrediram duas pessoas lá dentro que os confrontaram com o porquê dessa atrocidade. Só pararam com os gritos: “Já mataram um. Querem matar outro?”.
O relato de violência acentua a revolta que se instalou no Zambujal e na Cova da Moura, e que, nos últimos dias, se propagou a vários outros bairros da Área Metropolitana de Lisboa. À medida que os protestos avançam, e as distorções noticiosas se avolumam, os apelos aos registos audiovisuais aumentam.
“Ninguém gravou [o arrombamento da polícia] porque estavam todos em choque, incrédulos mesmo”, conta-nos uma amiga da família, acrescentando que cerca de uma hora depois da primeira investida, os agentes regressaram.
“Aí já estava uma advogada, que os confrontou”, assinala, enquanto insiste no poder das gravações. “Precisamos de provas de tudo”.
“Precisamos de provas de tudo”
Sem vídeos, será que a PSP teria mantido, em comunicado, as primeiras declarações feitas à comunicação social, de que Odair seguia numa viatura roubada quando foi interpelado pelos agentes?
“Precisamos de provas de tudo”, repete a amiga dos Moniz, antes de partilhar mais um episódio de indignidade policial. “A Mónica foi à Judiciária hoje [quarta-feira, 23] e trataram-na muito mal. Ela diz que se sentiu mal, pediu um copo com água, e responderam que, se quisesse, fosse à casa de banho beber, porque só havia água no piso de baixo”.
Os focos de desumanização, em que o luto por Dá é sucessivamente desrespeitado, não estão circunscritos à actuação das forças de segurança.
Pelo contrário, são disseminados por discursos políticos e narrativas noticiosas inflamadas, em que, sem direito a uma identidade humana, mas com morada “problemática” e suspeitas de actividade criminosa, os homens negros baleados pela Polícia não gozam sequer do estatuto de vítimas. Em vez disso, as suas vidas, famílias e bairros vêem-se arrastados para campanhas de desinformação, ódio e linchamentos de carácter.
Odair, que trabalhava como cozinheiro e, há cerca de sete meses, partilhava com Mónica a gestão de um café no Zambujal, foi rapidamente rotulado de “criminoso”, e a sua morte apontada como exemplo de boas práticas policiais.
“Porque é que não parou?”, “Porque é que resistiu?”, “Porque é que andava ali àquela hora?”. Em diferentes versões, entre comentários nas televisões e nos jornais, e reacções nas redes sociais, acicatadas por responsáveis políticos, o veredicto do julgamento público é profundamente incriminatório e dispensa argumentos de defesa.
Afinal, percebe-se entre ocupações de espaço mediático, se há alguém nesta história digno do benefício da dúvida, só pode mesmo ser o polícia, porventura um “português de bem”.
A última cachupa
Já Odair, esse, não passa, aos olhos de quem o condena, de um “bandido que teve o que mereceu”. Menos um negro da ‘cor da ameaça’. Mais uma pessoa violentamente arrancada dos filhos, mulher, amigos e comunidade.
“Estávamos a sair da música ao vivo, e o Dá tinha ido ao café, no Zambujal, buscar cachupa para os miúdos. Ele estava a voltar para a Cova para comerem todos juntos, quando se cruzou com a Polícia. Eles dizem que o mandaram parar, e que ele não obedeceu. Mesmo que isso seja verdade, é suficiente para matar uma pessoa? Ainda por cima desarmada? Como é que um agente treinado dispara assim, logo para a barriga, em vez de apontar para a perna?”.
As perguntas, colocadas por várias pessoas, num entrelaçado de conversas paralelas, permanecem sem respostas, agravando a desconfiança instalada entre moradores e Polícia.
“E agora?”, inquieta-se Mónica, atordoada pela dor de uma certeza tão aberrante quanto dilacerante: “Mataram o Dá!”.